Textos


           O Milharal 

 

 

Ontem, por volta das doze ou quinze horas, Abelardo estava voltando pra casa, matutava muito, abundantemente, fugiu de casa para um destino que desejava desde o ano passado, entrementes, não atinou se foi no início do trajeto ou no meio, olvidou do seu destino.  

— Que dia é hoje? — Balbuciou como se estive fazendo uma confissão, contando um segredinho sórdido no pé do ouvido de um(a) confidente, revirou os olhos três ou quatro vezes...   

Olhou para o sol, mas a lua já havia tomado posse do lugar. Que me importa o dia, noite ou da data exata? Que tenho eu com datas, as datas são ocupações dos leitores. Coçou o rosto abaixo do olho esquerdo um pouco longe da bochecha, martelou a pele com a unha do dedo indicador, carcomida, já de longa data, pelos próprios dentes. Olhou para baixo por impulso, ou um ato impensado, talvez automático?      

Desistiu de coçar o rosto, lançou as unhas da mão direita à cabeça e cravou-as no couro cabeludo. Com os olhos fixos no chão, viu um pedaço de papel, talvez tenha sido uma revista, jornal ou mesmo um pedaço de folhetim.  

“A...”  

Era um parágrafo de no máximo quatro linhas, de algumas palavras estavam faltando letras, porque o papel estava rasgado, outras estavam cobertas pelas sujeiras. Apesar da imundice do pedaço de papel, já carcomido pelos pés que fora escorraçado, a frase estava 100% legível, “A ...”                    ”   

Equilibro e serenidade nesse momento, leitor, é basilar de sua parte ter calma e relaxar, nosso planeta levou milhares de anos pra ser o que é, a frase virá em breve. Sua espera será ‘efêmera’.  

Abelardo ficou estático após ler a frase, entre rasgos e sujeiras por várias eternidades. Remoeu... e como remoeu aquela frase! Por um instante até, só por um instante, pensou em levar aquele pedaço de papel, colocá-lo num porta-retrato e pendurá-lo na parede. Mas não! Acreditava firmemente que sua memória era sadia suficiente pra gravá-la por várias eternidades.  

Não lembrava mais quem proferiu “o homem é a medida de todas as coisas”, ou seja, as ações que vierem do homem jamais aos demais vão espaventar. O que poderia o homem praticar ou executar para os demais se sobressaltarem, acharem fantástico ou horrendo? O homem comporta-se como um neandertal vestido como um palhaço para uma festa sem graça, estúpida e cômica.  

Nós somos mesmo pretensiosos à beça — que bando de patifes humanos! Acreditamos que temos uma ferramenta que é usada quando bem queremos, a razão. Quanta pretensão!... o homem ainda rumina... e rumina muito, por acreditar que tem consciência e a entende, tanto que acredita que pode fazer escolhas... — quanta estupidez, quanta inocência... Somos mesmos símios na fase filhote!   

Abelardo, desde criança, apesar do homem ser uma eterna criança, tinha uma convicção: “o homem feliz é o homem que mente, que é dissimulado, incógnito, literalmente, sorrateiro”. A verdade é para os fracos, a verdade cansa, exaure, humilha e deixa o homem pretensioso. Um homem de fino trato e dócil é um imbecil, literalmente um pateta.    

Chegou no seu mosteiro, Abelardo se comportava —  e acreditava nisso — como um monge, um ermitão, um desagregado da sociedade, um ser feliz... na realidade, morava num casebre de dar inveja nas pessoas. Chegou pela rota mais curta, digamos, curtíssima ou rapidíssima, provavelmente se arrastava como um foguete. Adentrou, na sua morada sem os sapatos, hábito novo, recente, achava que devia deixar a sujeira da cidade do lado de fora. 

Calçou suas pantufas e deslizou até a cozinha, um pastel de goiabada e um copo duplo de Toddy com leite semidesnatado o esperavam impacientemente. Ali, em pé, no centro da cozinha, deu cabo à refeição com uma paciência de Jó.  

Num repelão, escafedeu-se para o banheiro, escovou os dentes com os dedos, quinze deles eram naturais, os demais eram postiços e implantes, o sorriso era lindo, perfeito, digamos... uma eternidade plástica.  

Seguiu para a cama do quarto, que poderia ser para hospedes, não tirou as pantufas, nem a calça, nem a camisa, nem mesmo sua gravatinha borboleta. Olhou para o teto, viu a mancha que há anos lhe corroía o estômago, uma úlcera literalmente nas alturas: sempre que a via, pensava em pintar o teto novamente. 

Mas, confidencialmente, bem no íntimo, no fundão da sua inconsciência, acreditava que certas promessas não devem ser cumpridas — o remorso de não as executar deve ser eterno —, postergadas para o infinito...  e assim Aberlado devaneava consigo mesmo, de si para si.  

Olhos fechados, ruminou a frase, remou, remastigou palavra por palavra, letra por letra... após duas longas eternidades, deu início às suas elucubrações.  

Durante 15 minutos, Aberlado não conseguiu pensar, um espasmo muscular, aliás, vários, de variados tipos, dominaram-no, retorceram seus músculos da face, do tórax, das costas, pernas, braços, nem a carótida foi poupada, coisa horrenda, segundos se tornaram dias, minutos lhe pareceram meses, horas transformaram em anos. Com os lábios retorcidos, ora para esquerda, ora para baixo... para cima, a língua colada no palato.  

— Oh, maldição desgraçada!  

Grunhiu, rugiu como um animal, até que os espasmos lhe deram uma trégua suficiente parar ter tempo de se medicar e prevenir um novo flagelo. Suando em bicas, retornou para suas meditações.  

— Devo continuar a elucubrar? ... Meus Deus! Sou ateu.  

Felizmente foi vencido pelo cansaço, por suportar tanta dor, tantas contrações e convulsões totalmente desorganizadas, das mais variadas intensidades pelo corpo todo. Dormiu como um inocente, como um ser puro, caiu num profundo sono e sonhou.  

Seu corpo era translúcido, de uma transparência que beirava à invisibilidade, plainava sobre um enorme milharal, com espigas de milho perfeitas, enormes, de um verde imensurável, a terra de um vermelho apavorante, só os pés de milho tocavam o solo, não havia nem uma folha caída, seria um milharal surreal — estaria sonhando? —  ruminava em seu sonho.  

Bem definidos, muito claros e fáceis de identificar, aproximavam, em disparada, javalis em bando ... e adentraram o milharal... Pareciam uma falange, era impossível contar, era inverossímil saber com exatidão quantos eram, rasgavam as espigas pelas metades, derrubavam os pés de milhos e socavam a terra com ódio, raiva e desprezo, devoravam as espigas de milho com suas presas afiadíssimas, destruíam o milharal e castigavam a terra com suas unhas; pisavam com força pra machucar, ferir, sangrar. 

Atrás da manada dos javalis selvagens, de pelos eriçados como porcos espinhos, ouviam-se tiros, muitos tiros, tiros de todos os tipos, espingardas, revólveres, pistolas, cartucheiras... Quanto mais os javalis adentravam o milharal, mais tiros eram disparados, haja tanta munição, haja milharal. Na mesma proporção que o milharal era pisoteado e destruído, um novo milharal perfeito brotava à frente dos perseguidos e dos seus algozes.   

Abelardo se surpreendeu ao ler os pensamentos dos javalis e de seus perseguidores. e as munições, na realidade, eram balas carregadas de contos fantásticos!   

Eram dois bandos, entrementes, os javalis não tinham conhecimentos para interpretar corretamente os contos, não sabiam ler, alguns até tentavam, mas comer as espigas era mais importante... alguns liam, mas não interpretavam direito, pouquíssimos interpretavam, mas eram empurrados pela inercia do bando.   

Os seus perseguidores eram dois grupos separados por cor, uma cor era assim, outra cor, assado, seus petardos se diferenciavam pelos seus contos maravilhosos. Pouquíssimos, uma parcela ínfima dos javalis com seus pelos eriçados como agulhas, ruminavam particularmente — como pode haver duas opções perfeitas? A perfeição seria múltipla?  

Alguns javalis, mesmo amedrontados, tiveram coragem e olharam para trás. Entre os grupos, havia discórdia, choro, ranger de dentes, pareciam dois grupos de mercenários, um jurando eliminar o outro —  como esses contos fantásticos podem ser reais se têm origem no ódio?  

Meus Deus do céu! Quem me socou, quem é o desgraçado que me agrediu? De tanto se contorcer, devido ao sonho, Abelardo caiu da cama e bateu o olho numa caixa de ferramentas, que estava ao lado da cama.    

O sonho o abalou tanto que não sentiu, nem sentia, dor no olho, repassou todo o sonho, pensou, rememorou várias vezes, lembrou-se da frase que estava cravada em sua cabeça, sentia-a gravada em sua mente, como Cristo na cruz.  

Abelardo foi até a janela do quarto, abriu-a, olhou despretensiosamente para o mundo, com um sorriso cínico, sarcástico, falou baixinho para o mundo ouvir bem a frase do papel rasgado e sujo; “a democracia é a pior forma de governo” 

 

 

Eder Rizotto
Enviado por Eder Rizotto em 28/09/2021
Alterado em 04/11/2021


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