Textos



                                      A Fome
                            19/05/2020


Tudo lembra uma paisagem, sim uma paisagem rotineira de uma mesmice estupida e ingênua, o periódico escancarado, a cadeira de balanço a lamentar, o leitor desinformado de meias brancas, chinelo havaianas, pijama com estampas do Batman numa peleja com o Pinguim e a lente do seu monóculo besuntado.

Mas tudo isso acima não tem nada a ver com o agora, não vem ao nosso propósito, não mesmo. Percival Boulevar das Almas, amigo de longa data, bate à porta, é ele sim, aquela batida só podia ser do Percival, se não fosse o Percival, seria outro Percival Boulevar das Almas esmurrando a porta.

Salivava em abundância, espumava algo elástico e viscoso. Estrebuchava convulsivamente e tinha os olhos a saltar da cara, parecia uma gazela que escapara de um ataque de vinte leões e uma leoa no cio. Quando fecho a porta e procuro a cadeira de balanço, não a acho mais, desaparecera como num passe de mágica, ela sumiu, escafedeu-se! Crio um monólogo comigo mesmo. Me sinto como uma barata tonta, lerda e mentecapta.

Busco outra cadeira, que não é de balanço, arrasto-a, e me sento de frente para Percival Boulevar das Almas já sentado a balançar.

__ O mundo vai bem, o problema é o homem! Sim, é isso, é o ser homem, essa besta viandante. Fala com os olhos afogados em lágrimas, aquele que penetrou na casa.

Mas quero abordar a pandemia, alias! A pandemia se tornou para mim como uma amante recente, um carro novo, a pandemia é como uma criança com um picolé na boca, escorrego para esse tema como uma azeitona na boca de uma banguela. num outro dia leitor amigo, volto no diálogo que Percival Boulevar das Almas ele me engambelou deveras, era uma conversa sobre a filosofia da vizinha dele.

não me lembro o nome da criatura, mas sei que ela é a vizinha do meu estimado amigo. Ela não é de gargalhadear, apenas movia o lábio inferior quando algo lhe causava curiosidade. Primeiro movia para baixo, curiosidade muito intensa torcia para a esquerda, curiosidade esquisita, torcia para a direita.

Quando as mortes começaram a ser anunciadas pelos jornais e tevês, uma sombra densa caiu sobre as criaturas humanas, as pessoas pintavam um pavor no rosto que a gente até acreditava. Infelizmente, a tinta foi acabando, os sustos diminuindo e as pessoas passaram a contabilizar os mortos como nas receitas de bolos, tanto disso, tanto daquilo, mais isso, ou seja, números.

Mas não é isso que quero falar, quero falar das mortes da subnutrição no mundo, eu sei, eu sei... eu sei! isso acontece a anos a fio, isso não é problema, o problema é a morte de corona vírus, isso sim que mata, morrer de fome não.

8500* crianças morrem todos os meses no mundo de sub nutrição, na verdade, elas não morrem, eles são apenas números que preenchem estatísticas mundiais, por que esses seres são irrelevantes? Essas mortes não são trágicas, morrer de corona vírus sim, eis a tragédia, o holocausto, eis aí o apocalipse.

há um ditado que diz o seguinte: “Desgraça pouca é bobagem”. No meio desse inferno todo que a humanidade está passando, das mortes devido a pandemia, das mortes por subnutrição, temos os políticos tirando proveito da situação, saqueando, ou seja, despojando o erário público, aliás existe uma máxima dos evangélicos: o demônio vem para matar roubar e destruir". Eis o político.

Agora me lembro, aliás seja dito de passagem, o esquecimento nada mais é do que um exercício de paciência, tentar lembrar de algo que precisa e não deixar pra depois, quando relembrar o que buscava, será uma pessoa mais paciente. Generosa Catabriga, sim, é o nome da vizinha de Percival Boulevar das Almas.

Generosa Catabriga tem uma filosofia: “A dor não vai além dos muros dos parentes”, se a morte não lhe diz respeito, não atrapalha a sua vida, isso não é trágico, é notícia. É tinta pra jogar no papel e transformar em matéria de jornal.

Quantas pessoas morrem de fome ao bater na sua porta? Quantos corpos abandonados nas ruas devido à fome você precisa saltar para chegar ao trabalho?

Todas as vezes que Percival Boulevar das Almas cruza com Generosa Catabriga, toma uns sopapos na cara, ele se senti um canalha, mas depois passa. O que enfurece Percival Boulevar das Almas não são os tabefes nas fusas, é a indferença, precisa que alguém da família morra de fome para se tornar um ser melhor, a fome também mata.

*https://blogs.canalrural.com.br/agrosuperacao/2020/03/14/8-500-criancas-morrem-de-fome-por-dia/



 
Eder Rizotto
Enviado por Eder Rizotto em 19/05/2020
Alterado em 22/05/2020


Comentários


Imagem de cabeçalho: raneko/flickr