A velha!
Ah como odeio essa velha, meu Deus do céu, como eu a odeio! Meu Deus do céu! Eu sei, eu sei, essa velha maldita faz de propósito, urdi contra mim por prazer, puro deleite.
Ela pressente meu ódio? Óbvio, pois é evidente, odeio esse comprimento matinal idiota, esse tal de “bom dia”. Evito, corro e me escondo pelas frestas para não dar nem receber esse maldito ‘bom dia’.
Mas ela sabe, sabe sim, todas as vezes que cruzo com essa indigna velha, véia feia, ela escancara os dentes e fala quase a soletrar, ‘bom dia’!
Outro dia, coisa de dias atrás, no elevador, quando entro, quem já estava lá dentro? Sim, com mais três senhoras cheirando a gente nonagenárias, mais a velha que escancara os dentes para o mundo quando me diz, ‘bom dia’.
Mas essa boca só escancara para quem ela sabe que lhe odeia. Sofro e fico a beira de um possível ataque de me suicidar.
Entro no elevador, a porta se fecha e começa a descer. A velha indecente fita com seus olhares malignos aquele que entrou dos pés à cabeça, retorce o nariz para a esquerda, torce a boca para a direita, olha para as velhas que cheiram agora centenárias cansadas, retorna o olhar para o último passageiro. Diz:
-- bom dia né? Meu senhor.
Olho a desgraçada da velha véia, somo a idade das quatro mentalmente, no mínimo 650 anos. Miro as outras velhinhas com um sorriso amarrotado, cheirando a roupa passada com amaciante em ferro quente, penso: será que essa trupe sai pelo mundo escancarando a boca ao mundo para dar ‘bom dia’?
Digo bom dia com um sorriso besta na cara, fitando as véinhas companheiras daquela capeta anciã que vive no me encalço. Quase levou-me a um outro possível ato de loucura.
Bestialmente por educação, abro a porta do elevador e seguro até a última velha sair, quando a velha chata saiu do ascensor, ela me encara como se estivesse a me desafiar, tipo: ah se você não agisse como um cavaleiro.
Quando essa praga velha já está de costas, fico a imaginar: ah, como seria bom ver essa velha sem nenhum dente na boca, nenhum mesmo, nem mesmo aquele para furar azeitonas, rasgar um naco de carne. Fico a imaginar essa velha aborrecida que me aborrece por satisfação comendo rapadura.
Ah que bom seria, chupando um pedacinho de rapadura até o último grãozinho de açúcar, mascando um pedaço de carne de segunda cheia de nervos, chuparia os nervos da carne até ficarem brancos, transparentes, translúcidos, que maravilha! Que beleza gente! Aquela velha rabugenta levando horas e horas para comer um pedacinho de nervo e de rapadura.
Será que a velha ignóbil esbugalharia as carcaças sem um dente sequer e diria, ’bom dia’?
Mas que horror, como você pode desejar ou imaginar uma senhora idosa sem nenhum dente? O leitor poderia censurar o escritor, sim, claro que poderia, mas o mundo é para o belo, nunca vi ninguém fazendo tributos ou honras a uma boca desdentada.
Se aquela velha bronca, como odeia essa véia, fosse uma banguela, kkkkkkk aposto! Não sairia um “a” daquela boca banguela. Uma boca escancarada de dentes, é tudo que todos querem como cantava Raul Seixas: Só as banguelas nesse mundo não tem vez!
Já li muito, não o suficiente, mas a leitura é um hábito que se tornou uma necessidade até conpulsiva. Nunca li em todos os livros que corri os olhos, uma declaração de amor para uma mulher desdentada, um sacrifício masculino por uma banguela, um suicídio por uma boca escancarada para o mundo sem um dente sequer.
O ditado mineiro que diz “o tempo cura até queijo”, é verdadeiro. Meu ódio passou para uma obsessão, uma psicopatia. Passei a carregar aquela boca escancarada em meus pensamentos, usei de tanta força para me adaptar que a imagem se forjou num mural permanente em minha mente, em minha consciência, em minha memória. Acordava e me deitava com a boca da velha arregaçada em frente dos meus olhos.
Os detalhes dos dentes, quais eram obturados, em quais foram feitos tratamento de canal, quais estavam faltando, os que foram substituídos por implantes, a língua, o céu da boca, as bochechas internas, a saliva, o cuspe, a baba no canto da boca espumando e escorrendo como um chiclete quente.
De olhos fechados, dormindo ou em vigília, tinha a plena consciência de estar sentado em um cinema sozinho, na plateia, na tela duas imagens sobrepostas: minha vida no dia a dia se passava sobre uma. Na outra, a boca da véia velha totalmente esbugalhada.
Matar a véia, eis a solução: simples, rápido, uma execução relâmpago e indolor. O objetivo traçado trouxe paz, harmonia, equilíbrio e felicidade. Qual seria a melhor maneira de executar a sentença já dada?
No início de minhas pesquisas de como eliminar aquela velha véia e feia, ah como odeio esse ser. Percebi que apareceu um gato todo branco, ou quase todo branco, as orelhas eram de cor cinza escuro, o olho esquerdo azul o outro amarelo.
Quando saia cedo, o gato estava no hall do elevador, me comboiava até a saída. Quando voltava para o apartamento, o felino estava a minha espera e me acompanhava até o hall do elevador.
Comecei a desconfiar, comecei a observar esse fato: primeiro achei engraçado, mas depois fiquei encafifado, que coisa! O que está acontecendo? De onde esse gato saiu?
Tudo começou exatamente numa segunda feira, na segunda-feira seguinte, resolvi dedicar uma atenção especial para aquele bichano que não saia do meu pé.
Constatei que sempre que me olhava levantava uma parte dos beiços o suficiente para mostrar seu canino. Expunha apenas um, o outro não, como se o gato estivesse torcendo a boca para mim.
Outro fato: logo depois de arreganhar uma única presa, ele abaixava a orelha direita pela manhã e pela tarde era a orelha esquerda que dobrava.
No décimo quarto dia, já tinha tudo confirmado. Durante sete dias consecutivos essas atitudes do gato, passei a sonhar com o gato também.
O sonho era sempre igualzinho: todos os dias ao dormir, a velha de boca escancarada e agora com o gato em cima da cabeça dela. As duas patas dianteiras do gato, ficavam entre as sobrancelhas da velha, abaixando as orelhas alternadamente, direita esquerda, direita esquerda, assim sucessivamente e com seus olhos um azul outro amarelo, olhando para dentro da boca da velha, depois para mim, sucessivamente.
Será que a velha é o demo? Será que ela é uma feiticeira? Será que a véia incorporava no corpo do gato? Ou o gato era uma extensão da velha?
Durante quinze dias li tudo sobre bruxarias que envolvia gatos, deste os primórdios das primeiras civilizações. Registros sobre os possíveis enigmas, mágicas, rituais, sessões macabras, reais ou não. Por fim julguei que uma parte do gato era do demo a outra metade era da velha. O gato mesmo seria apenas um meio de transporte.
Passados já quarenta dias depois que tinha decido matar a velha, no quadragésimo primeiro dia, procurei um pai de santo. Expliquei tudo sobre o gato, mas nada sobre a véia. Esta, a tinha bem guardada comigo.
Depois de uma longa conferência com uma entidade espiritual, a única certeza que tinha era que o gato era surdo, não podia usar a visão e a audição ao mesmo tempo. O pai de santo estava certíssimo que os ouvidos eram do demônio, os olhos da véia.
Quando o pai de santo incorporou, virou um caboclo que tinha estudado com Oxóssi, Ogum e Xangô. Eles conversaram entre si, mas não entendi quase nada, pois os quatros conversavam por códigos e falavam nomes que nunca ouvi.
No final da sessão o preto velho foi dizendo ao mesmo tempo que me dava as costas:
-- pensa bem! Olha bem! Ponha essa sua cabecinha desmiolada nas alturas, a terra é dos ignorantes. Vá e não volte mais, véi tá cansado.
Logo que sai do terreiro, decido: vou matar a velha, no mesmo dia ou na véspera dou cabo ao gato, talvez faço até um tapetinho com a pele do bichano.
Durante a primeira semana depois de falar com o preto véi, tentei até ficar próximo do gato, mesmo sabendo que o capeta me vigiava com os ouvidos e a velha me perseguia com os olhos do felino. Tudo bem.
Mais uma semana e já sabia quais eram os pontos cegos das câmeras do condomínio, assim, ficava mais fácil saber onde e como exterminar a velha e dizimar o felino.
A dúvida era usar uma machado ou um facão: se fosse um facão teria uma lâmina de quarenta centímetros e um cabo anatómico de quinze centímetros para o golpe ser bem deferido, com força em abundância.
Na ponta do cabo, teria o desenho talhado da cabeça de um gato, na lâmina teria a seguinte frase: “conheci uma banguela, mas já esqueci da cara dela”.
Decidi pelo Machado, com os mesmos detalhes do fação. A frase mais a cabeça do gato entalhada no cabo. O instrumento para massacrar os dois foi forjado na cidade de Araguari. Lá tem um sujeito que suas ferramentas são cobiçadas e desejadas por muitos que conhecem seus trabalhos. Vem gente até do exterior encomendar facas, machados, punhal, canivete ...
Sexta feira, por volta das dez horas da noite, sai do apartamento com o machado embrulhado numa fronha, mas não usei o elevador, fui pelas escadas. Sabia que o gato endemoniado estaria no hall de frente para porta do elevador. Na noite anterior tinha azeitado as juntas das dobradiças da porta que sai das escadas e vai para o hall. A câmera do hall estava estragada.
Perto da porta do hall, tirei o machado da fronha. A partir do momento que abri a porta, não respirei, passei pela porta, fechei-a alcei o machado acima da minha cabeça com as duas mãos.
Foram duas machadadas, a primeira cortou a cabeça do gato entre os olhos, a segunda, separou a cabeça do corpo. Para a velha não ver nada, ensaquei a cabeça do bichano na fronha. Peguei o corpo, levei para um canto afastado do prédio, encharquei de gasolina e ateei fogo.
Voltei rapidinho para o apartamento com a cabeça do gato ensacada na fronha. Estranho! Logo que rachei a cabeça do gato, tinha a sensação que alguém me acompanhava e ficava rindo cinicamente atrás de mim.
Cheguei no apartamento, aloquei o resto do felino no congelador. Lavei o machado e me preparei para ir para o apartamento da véia.
Quando me preparava para sair o interfone toca:
-- Boa noite, por acaso o senhor sabe ou viu quem ateou fogo num gato lá no final do condomínio?
-- Não, não sei nem vi. Puts! Que maldade, quem poderia fazer uma coisa dessas?
-- Pior! Arrancaram a cabeça do bichinho, meu Deus, estou com uma dó do gatinho.
De repente me dei conta que ainda estava dentro do banheiro, não estava onde ficava o interfone. Será que o diabo tinha entrado dentro da minha mente?
Foda-se! Peguei o machado, desci pelas escadas tranquilo, afinal era impossível alguém me ver. Tudo dentro do programado. Segui para o prédio da velha, subi pelas escadas, com o machado em punho. A luz do hall estava desligada, tentei bater na porta, mas foi impossível, a porta estava aberta.
As luzes do apartamento estavam apagadas. Entrei, quando olhei para trás a luz do hall do andar acendeu. Olhei para o interior do apartamento e vi um vulto marchando em minha direção.
Rapidamente elevei o machado acima da minha cabeça, dei uma machadada com todos as forças que tinha naquele caminhante errante que se aproximava de mim.
A sensação de alguém atrás e de sorriso cínico persistia. Um arrepio perpassou por todo o meu corpo, minha alma pediu abrigo à Deus, me dei conta que ainda estava no banheiro.
A possibilidade do capeta fazer morada dentro do meu corpo passou pela minha cabeça. Meu Deus! Isso não, diante do espelho no banheiro, pensei em me jogar pela janela ou pela sacada. Mas não era o meu mais íntimo desejo.
Achei por bem seguir rastejando até a sacada. Fechei a porta e quebrei a chave na fechadura. Pela sacada não me jogaria, também tranquei e obstrui a entrada da chave, fui em todas as janelas, tranquei-as com cadeados e entupi as fechaduras.
Rastejei até o quarto, deitei-me na cama. O medo era tanto que liguei todas as luzes do apartamento, com um terço em torno do braço direito, rezei por toda a noite. Não sei a que horas desfaleci de sono, mas acordei depois das cinco horas da tarde do dia seguinte.
Permaneci preso no apartamento até o dia seguinte, pois havia travado todas as fechaduras das portas e janelas. Por volta das oito horas do dia seguinte, liguei para um chaveiro. O mesmo foi até o apartamento, destravou as portas e janelas e trocou as fechaduras necessárias.
Acompanhei o chaveiro até a portaria e quando fui entrar no elevador quem me aparece? Ela, ela mesma, a velha! Mas não me cumprimentou, não me olhou, nem sequer agradeceu, pois ela sempre, sempre agradecia quando eu segurava a porta para ela sair ou entrar do elevador.
Ao retornar ao apartamento percebi que não sentia medo, não tinha mais as visões da velha e do gato em minha mente. Não sentia ódio pela velha, me sentia bem, me sentia eufórico sem entender o porquê.
Naquele dia deitei cedo, totalmente fora da minha rotina, me cobri, algo muito raro, coloquei um travesseiro por debaixo das pernas acima do joelho. Nunca fiz antes, mas me senti confortável. Percebi que o sono se aproximava como uma névoa de cor turva em velocidade muito lenta, era como se todo o quarto estivesse sendo preenchido por nuvens densas que anunciam uma grande tempestade.
Estava totalmente envolvido com o movimento das nuvens do quarto quando percebi, a velha estava sentada ao pé da cama, eu estava fora do meu corpo sentado na cabeceira. Assustei muito, tentei correr carregando meu corpo, impossível, minhas mãos e meus braços passavam pelo corpo, minha alma imaterial não retinha nada do corpo. A velha calmamente colocou uma mão no peito do meu corpo, sobre o coração e disse:
-- Calma, não tenha medo, venho agradecer, não para lhe ferir.
Naquele instante não pensei em Deus nem no diabo, apenas olhava uma velha diante de mim que irradiava segurança.
-- na próxima vez que me ver, verás exatamente como sou, um ser num corpo decadente no seu último momento de vida entre os mortais.
Delicadamente, a velha acariciou os cabelos da minha cabeça, como se os penteasse, suavemente passou os dedos sobre minhas sobrancelhas, distanciou do meu corpo e ficou em pé bem próxima de mim.
A velha rejuvenesceu uns 60 anos, agora era uma adolescente formosa de 1.87 de altura, cabelos escuros, olhos azuis, pele como se fosse de pêssego maduro. Um corpo esguio, era uma linda jovem mulher.
-- Tenho que ir, antes de chegar até a luz, tenho minhas penitências a pagar. Benjamim, muito obrigado por me libertar, estava sob o domínio de Abramelech, grande chanceler de Lúcifer que comanda mais de sessenta legiões de demônios. Benjamim, você é filho da felicidade, graças a você sai de uma prisão que consumiu metade da minha eternidade. Tenho que ir. Paz saúde e muitas felicidades. Sou Wanda, a andarilha.
Wanda dissipou como névoa e se misturou as nuvens que preenchiam todo o quarto, lentamente pela fresta da janela a nevoa foi escoando devagarinho. Quando o quarto estava sem nenhuma nuvem, acordei em meu corpo.
Quando acordei já era dez horas da manhã, mal me levantei e cai na cama aos prantos, chorei convulsivamente por longo tempo. Aos poucos controlei o choro, mas continuei a chorar. Saber que ao encontrar a velha, ela iria morrer, sua vida terminaria ao meu encontro.
A vida de um ser humano, de uma mulher estava sob os meus domínios. Tudo que Wanda me disse era verdade? Ou seria outra ação dissimulada do maligno?
O belo está sob o domínio de Deus ou de Lúcifer? Afinal, Wanda é linda, é bela! Deus permitiria o demônio fazer uso do belo ao seu bel-prazer? Ou aquela imagem era a imagem da mulher bela e perfeita para mim?
Por volta das oito horas da noite, sai do apartamento convicto que eu era um andarilho tanto quando a Wanda, que nascemos para morrer. Tudo que passei durante os últimos cinquenta dias poderia ser apenas um sonho? Estaria assistindo um filme? lendo um livro, ou o leitor influenciando o escritor?
Ao chegar no hall e abrir a porta do elevador, a velha estava encostada na parede, muito mais velha. Talvez uns mil, ou dois mil anos! Entrementes esbanjava saúde. Me disse:
-- Demorou rapazinho, sei que viria, mas demorou mais que imaginei. Obrigado por tudo, mas agora tenho que ir. Tchau.
A velha me deu um longo beijo na boca, manteve as duas mãos em meu rosto enquanto me beijou longamente.
Ela afastou devagarinho, fiquei abobalhado, estático, parece que a velha me imobilizara com algum feitiço. Teria um veneno em seus lábios?
Então a velha deu uma longuíssima gargalhada. Para meu espanto não tinha um dente sequer! Risada de banguela, ela escancarou para o mundo todo a sua banguela, suas duas arcadas dentárias lisinhas recobertas apenas por uma gengiva muito fina e rosada. Caiu aos meus pés. Estava morta!