Textos


                  Motoqueiro selvagem

Quando Ferreirinha adentrou na farmácia, tinha a sensação de estar penetrando numa festa, numa festa nostálgica, um bem-estar indescritível, um arroubo, parecia um arrebatamento. Até pensou: se estivesse indo para a execução, fosse na guilhotina ou fuzilamento, iria a passos largos, o êxtase naquele momento era divino, único.

Procurou um balconista mas percebeu que havia uma fila única para ser atendido no balcão. Sem cerimônias chegou no final da fila como uma criança, escorregando, imitando o som de um carro derrapando.

À sua frente havia uma mulher alta, mais alta que Ferreirinha, não muito, mas o suficiente para impactá-lo. A estatura era um detalhe, mas quando olhou para baixo e viu que o dedinho do pé esquerdo da moça estava encapado com um Band-Aid, um comichão, tipo uma sarna de cachorro vira-lata, um fogo brotou de sua mente de curiosidade.

Detalhista ao extremo, olhou detidamente o dedo minguinho envelopado da moça. O que poderia ter causado o ferimento naquele pedacinho de corpo tão frágil? Deu tanta dó da moça, que ficou preocupado com o bem estar dela!

A mulher era linda de morrer, aliás, leitor, todas as mulheres dos meus contos são lindas, olhos castanhos meio amarelados, parecia olhos de onça, onça brava? Pode ser! Pode não ser!

A boca miudinha, com dois dentinhos tipo coelhinho da pascoa, lábios fininhos, mas o batom roxo! Ah aquele beicinho roxo. Um roxo bem fechado deixava a moça um tanto enigmática, seria a Malévola? As mãos grandes com dedos longos.

O esmalte combinava com a calça, cor roxa, nem claro nem escuro. As mulheres sabem definir as cores, afinal, elas vivem com mil cores na cabeça!

A cor do esmalte grilava a curiosidade de Ferreirinha, afinal de contas, mulher troca de roupa até três vezes por dia. Se ela trocasse a calça? E o esmalte?

Ferreirinha com essa mania de ser detalhista ao extremo, contar e perguntar tudo sem papas na língua, isso sempre lhe criou problemas. Certa vez, numa mesa de boteco relatou um fato: estava viajando de moto, seguia tranquilo pela estrada. Não estava devagar, a velocidade também não impressionaria ninguém.

-- Gouvêia, meu amigo, você conhece bem aquele trecho entre a ponte Estelita e Catalão. Não é?

-- Aquela na Divisa com Minas e Goiás, certo?

-- Exato, pois é, você não vai acreditar, logo que passei a ponte, eu mandei ver, torci o cabo do acelerador de boa. Mas o imponderável surgiu do meu lado!

-- Que papo de marciano é esse? Imponderável do seu lado? Você quer dizer imprevisível. Correto?

-- Vamos aos fatos: estava pilotando a moto de boa.  De repente, um mulher! Pilotando uma moto, uma puta de uma BMW 1000R, ficou lado a lado comigo. Ela me olhou e fez aquele movimento com a cabeça, em que é clara a mensagem, tipo: essa moto sua é uma bagaça, você é horrível!

-- Gouvêiinha, essa mulher levantou a viseira e falou:

-- Você é fraquinho, vai pra casa vai! Depois piscou pra mim.

-- Essa folgada, acelerou e sumiu na minha frente. Eu não pensei duas vezes, naquele momento, falei comigo mesmo: ah Aliny, você está se achando, né? Vou te atropelar, sua perva!

Nesse dia a esposa do Ferreirinha estava na mesa. Ela se levantou já com o dedo em riste, jurando sangrar o esposo se ele não falasse a verdade. Conhecedor da brabeza e da disposição da esposa, explicou na hora:

-- Amorzinho! Pelo amor de Deus! Estava escrito na lateral do capacete dela, “Aliny”. Na parte de trás do capacete, havia um desenho de uma maquina de destruir cartão de crédito.

A esposa jurou aos gritos:

-- Você me paga Ferreirinha! Você acha que eu sou besta? Uma tonta? Eu vou passar um ferro de passar roupa quente na sua cara. Cretino!

Foi um reboliço no boteco, mas com jeitinho, os colegas garantiram para a esposa, dona Malva, que o marido falava a verdade. Ela se acalmou, mas não retirou a ameaça do ferro quente.

-- Pois bem,
Gouvêia, eu reduzi a moto da sexta marcha, chamei uma quarta marcha, fritei o motor até o limite, fui a cento e noventa e cinto por hora.

Quando passei para quinta marcha, passei pela atrevida, aquela desaforada, que me ofendera. Passei tão rápido, que pouco tempo depois percebi que a provocadora sumiu. Reduzi a velocidade e nada da mulher! Pensei:

ela deve ter caído e quebrado o pescoço, ou afinou, ou se borrou, o que é pior que cair e quebrar o pescoço!

-- E a mulher da farmácia! Como terminou a sua curiosidade do dedo dela? indagou
Gouvêia.

-- Pois é! Bem, eu não aguentei de curiosidade e perguntei pra ela:

-- Moça, desculpa, mas como você machucou o seu dedinho do pé esquerdo?

A princípio, a mulher fez que não ouviu. Perguntei de novo, ela fez que não era com ela.

 Ferreirinha olhou bem para a mulher, para o corpo mais especificamente, e ficou com uma dúvida martelando sua mente. A mulher tinha a pele branca como maisena, cor leite de vaca ou cabra. Cor de Leite!

Mas como tinha os cabelos pretos, as pessoas diriam que ela era morena. Com pode uma mulher branca ser chamada ou identificada de morena, só por causada cor do cabelo?

Ferreirinha não se aguentou e tocou no ombro da mulher e lhe perguntou:

- Oh moça, como você machucou o dedinho do seu pé esquerdo?

Outro detalhe que Ferreirinha percebeu, a mulher tinha uma chave de carro na mão direita, marca Honda. Mas esse golpe ele já conhecia.  Muitas mulheres compram um carro mequetrefe, mandam fazer a chave com o emblema da Honda. Quando você vê, é um Chevette, Fusca, Fiat Uno pé-de-boi! Esses pés de boi da vida.

A mulher usava uma  blusa de manga comprida preta com estampas em cor bege escuro. Os desenhos era círculos e cruzes, as cruzes separavam os círculos, linda a blusa!  Usava uma sandalinha, tipo rasteirinha, que deixava o dedinho machucado todo exposto. Ah, coitadinho daquele dedinho.

Ela conteve a irritação, torceu a boca, dobrou o joelho direito, com a perna esquerda, ficou na ponta do pé, coçou a cabeça, alisou o cabelo, dobrou o pescoço para o lado contrário de Ferreirinha, continuou alisando o cabelo e falou:

-- Machuquei no carro.

-- No seu Honda? Claro, né? Interrompeu Ferreirinha a moça. Com um certo cinismo e arrogância. Segurando um risinho maroto.

-- Não! Eu não tenho um Honda. Quem tem é o meu marido.  Eu tenho uma BMW. Passar bem, Rapaz!
Eder Rizotto
Enviado por Eder Rizotto em 19/05/2018
Alterado em 19/05/2018


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Imagem de cabeçalho: raneko/flickr