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                                        Plano perfeito


Darcília é mãe de quatro filhos quadrigêmeos, Ezequiel, Gabriel, Salatiel e Uriel, a diferença entre um e outro são de exatos 15 minutos, todos perfeitos, um o focinho do outro.

A mãe dos gêmeos era filha de família nobre de nome nobre e de destaque na cidade, mas o tempo passa e com ele leva a importância dos nomes das famílias de outrora, tornara-se apenas um nome bonito na sociedade, nada mais.

Ataídes, pai dos quadrigêmeos, era um senhor austero, rígido até demais, pior! Começando por ele mesmo, severo até manda parar.

Já a esposa, era um doce: uma uvinha de boazinha, sempre relevando os mal-entendidos entre os familiares e colegas. Não era ingênua, apenas acreditava na alma humana. Pensava consigo mesma: as pessoas agem mais na ignorância e nos impulsos, são crianças, nós precisamos nos ajudar e ajudar os outros.

O marido já pensava exatamente o contrário, pensava assim: se Jesus Cristo nosso senhor, se irritou com os vendedores ambulantes dentro da igreja, a casa do pai dele, deu lhes chicotadas e bicudas pra todo que foi lado, castigou o lombo dos folgados. Ele, o filho de Deus, corrigiu os idiotas na chibatada, eu também posso e devo!

Ataídes e Darcília se conheceram devido a um acidente de carro.  Estavam viajando, ele num Chevette vermelho, ela numa Brasília verde. Até ontem ninguém sabe porque o piloto da Brasília freou o carro, sem nenhum motivo aparente, simplesmente carcou o pezão no freio.

O piloto do chevette vermelho, fumando seu cigarro, era Minister, bobeou, vacilou, encheu a traseira da Brasília verde.
No carro que ia à frente, haviam sete pessoas, no carro detrás, haviam oito.  Ninguém se machucou, exceto, o orgulho dos pilotos. A moral deles ficou como terra arrasada.

Um ano, três meses e quinze dias após o acidente na estrada Do-Pau-furado, com destino à cidade de Sombrio, eles estavam casados. O casamento serviu até pra desfazer o sentimento de terra arrasada entre os pilotos. Os pais acreditavam e anunciavam que o desastre foi a vontade de Deus! Vai saber né leitor amigo!

Darcília era tão, mas tão amorosa com os filhos que obrigou o marido a colocar outra cama de casal no quarto, dormia com os quatro filhinhos. Só lá pela alta madrugada que ia deitar no leito do marido.

O marido no início, relevou, mas com o passar do tempo, aquilo começou a dar gastura, um não sei o quê nas tripas dele, até que um dia ele enervou, zangou com aquela história da mulher dormir com os quatro filhos na cama:  um em cima do outro, assemelhava-se a uma ninhada de bichos dormindo, uma bagunça, um amontoado. Aquilo lhe aborreceu muito.

-- Darcília! Precisamos conversar, e é agora! Bota esses moleques lá no quintal, despacha pra fora! Esbravejou o marido.

-- Meu amor! Vai com calma tá! Afinal, o que está te transtornando tanto assim? Conta pra mim meu bem, conta vai!

-- Ou você coloca essa renca de meninos pra fora, ou faço eu, e você sabe qual é o meu jeitão né?  Qual você escolhe? Vai do meu jeito ou do seu?

A esposa, com calma, serena e tranquila, acomodou as suas crias no quintal para brincar, as crianças já tinham dez anos de idade.

-- Ezequiel, Gabriel, Salatiel e Uriel, não entrem na casa até a mamãe voltar, eu venho buscá-los.  Papai e mamãe precisam conversar, tá? Fiquem bonzinhos aqui.

-- É o seguinte Darcília: a partir de hoje, esses meninos dormem em camas separadas e no quarto deles.  Acabou esse negócio de dormir no nosso quarto e você engalfinhada com eles! Chega dessa farra! esgotou! você entendeu, né?

Ataídes foi até a dispensa, pegou um machado, seguiu até o quarto. Quebrou a cama em quantos pedaços, despedaçou o colchão, rasgou os lençóis, fronhas, travesseiros, colchas. Levou tudo para o quintal do fundo da casa e meteu fogo, álcool misturado com gasolina. Queimou tudo, tudinho.

A esposa, muito calma e serena, foi até o banheiro, lavou o rosto e as mãos com o sabão de bola feito pela tia-avó. Ritual dela, todas as vezes que o marido apelava para a força física, ela necessitava desse ritual.

Os filhos adoraram a fogueira, até ajudaram o pai a juntar as coisas e a botar fogo. O pai sempre muito cuidadoso com os filhos para não se queimarem. Olhava para os guris e falava quase espumando pela boca:

-- Encerrou! Cessou! Chega dessa palhaçada, não tem volta. “Zefini” com essa balburdia.

Os filhos só entenderam o que aconteceu pela manhã, somente quando foram dormir à noite. A genitora levou-os para o quarto, não havia mais essa história de dormir com a mamãe. O pai proibira. Choraram a noite inteira, todavia, cada um na solidão de suas camas.

Naquela primeira noite, o esposo dormiu de barriga para cima, a perna esquerda dobrada e debaixo da direita, uma mão no peito e a outra no joelho da perna dobrada. A esposa dormiu de lado, virada para a parede, com as duas mãos juntas entre as coxas, perto da virilha. Uma imagem que até poderia ser registrada por Picasso, Salvador Dali, ou quem sabe, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral ...

Os dias passaram, as semanas, os meses, mas antes que o fato tenebroso e ameaçador que sucedera fizesse um aninho, a esposa, que sempre foi e continuava um docinho, uma uvinha, começou a remoer por dentro as dores que os filhos sentiam por não poderem dormir com ela.

No dia do aniversário de Ataídes, era costume da família comemorar com um jantar só entre eles, pai, mãe e filhos, exclusivamente eles, mais ninguém.

Todos estavam sentados em torno da mesa, todas as panelas estavam descansando sobre a mesa. O vinho ainda respirava no decanter. Havia Q-suco de uva para os filhos e seguindo a tradição, o aniversariante deveria destampar as panelas e servir-se primeiro, devendo começar pelo arroz.

Ataídes se levantou, serviu vinho para a esposa e para ele, em seguida serviu o Q-suco para os filhos. Destampou quase todas as panelas, deixou a de arroz por último. Com um sorriso largo no rosto, que ia de uma orelha na outra, destampou a panela de arroz.

O sorriso escafedeu-se do rosto, a cara ficou vermelha como um pimentão, deixou a concha cair na mesa e vociferou:

-- Que que é isso? Que gozação é essa! Quem é o responsável por esse sarcasmo comigo?

Dentro da panela de arroz, havia um rato enorme, o bicho era avantajado.  As quatro patas do bicho foram cortadas, o animal estava ocupando toda a panela.  Pelos era o que não faltava no bicho, tinha pelo em abundância o roedor.

O marido fulminou a esposa com um olhar de arrepiar, com os punhos cerrados, balbuciava com os lábios trémulos:

-- Quem fez isso? Meudeusdúcéu! Quem é o lazarento?

Darcília olhou fixamente para o marido. Depois, sem mover a cabeça, olhou para a panela, depois para o marido, novamente para a panela, em seguida para o marido.  Juntou as mãos como se fosse orar, descansou as mãos sobre a mesa, moveu os olhos para onde estavam os filhos, retornou o olhar para o marido e finalmente descansou o olhar suspirando baixinho para a toalha da mesa.

A pai não titubeou mais nenhum segundo, pegou os quatro filhos e levou os para o seu quarto, deu uma surra em cada um pra nunca mais esquecerem. Daquelas surras de doer nos ossos.

A mãe entrou no quarto com todas as palavras necessárias engatilhadas na ponta da língua:

-- Prá fora!  Prá fora agora! Vá dormir no sofá, no quarto deles, em qualquer lugar, mas suma desse quarto já!

Mãe e filhos dormiram durante um mês juntos. Na inocência dos filhos, Darcília dormia agarrada feliz aos filhos, com um sorriso perfeito.

 
Eder Rizotto
Enviado por Eder Rizotto em 23/04/2018


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Imagem de cabeçalho: raneko/flickr