Pacto de Sangue
Quando Nelson Rodrigues morreu, Almeidinha falou:
-- Vai tarde, demorou! Deu uma escarrada no chão, pigarreou, cuspiu no chão outra vez e limpou a boca com as costas da mão.
Juvenal ouviu tudo e tremeu todinho, um calafrio lhe percorreu de cima para baixo, por todas as vértebras da coluna, após o calafrio dissipar pela última, ruminou: meu Deus do céu! Quando Olegário souber o que Almeida falou do Nelson Rodrigues, vai rachar a cabeça dele ao meio.
Almeida, conhecido por Almeidinha, Juvenal e Olegário, são amigos de sangue, é, é isso mesmo, fizeram quando ainda adolescentes, um juramento, na carne, de arrancar sangue com a ponta da faca cega; o pacto era o seguinte: “artigo primeiro - não há segredos entre nós. Artigo segundo, não há exceção”
-- Eu tenho que contar para Olegário, somos amigos de sangue. Juvenal falou baixinho.
Olegário é um sujeito a princípio, fácil de lidar, fácil de se levar, bom ouvinte, comunicativo, sempre tem respostas para assuntos complexos, mas tem uns espetos, umas perturbações; simula muito bem que está prestando atenção no que as pessoas estão lhe falando, mas não está nem aí. Ele apenas quer que as pessoas acreditem que ele é muito educado e prestativo, coisa que nunca foi, ou será.
Tem uma paixão doentia por Nelson Rodrigues, se alguém, e pode ser qualquer pessoa, homem ou mulher, criança ou adulto, falar mal do seu mito, sua paixão paradoxal, é de fazê-lo perder a razão, a visão, ou seja, torna se um hidrofóbico, e quando a hidrofobia se manifesta em Olegário, ele vai morder, ele vai distribuir sopapos, pernadas, tiros e facadas, o homem se torna um bicho insano.
Almeida é filho de mãe solteira, um sujeito desconfiado, arisco, todavia, crapuloso, debochado de uma ironia insigne, meio ignorante, tem o hábito de falar sozinho, rir de suas próprias estórias e de suas visões surreais.
Não é metido a valentão, quando ri, ri às baciadas, chega, às vezes, a chorar de tantas gargalhadas, ele quase faz xixi na roupa durante seus arrombos de risadas, ele é mesmo uma figura, só não suporta os contos e crônicas do Nelson Rodrigues, sujeito safado, pervetido e depravado, esse patife é um câncer na moral vigente.
Graças a Deus este escritor jumento virou um presunto frio e está a sete palmos debaixo da terra, comendo grama pela raiz.
Juvenal parece uma ameba, um encosto no trio, lembra uma assombração, está sempre um passo atrás dos colegas, nunca anda no mesmo alinhamento dos colegas, sempre atrás.
Concorda com tudo que os amigos falam, de poucas risadas, mas quando está sozinho faz chacotas dos amigos e ri pelo canto da boca, chega ao ponto de babar, mesmo babando, continua rindo pelo canto da boca por horas a fio.
Não acrescenta em nada ao grupo, tem receio de afirmar quando lhe pedem uma aprovação, manifesta acabrunhamento quando lhe solicitam uma negação como uma concordância. De bom mesmo, o parasita só tem a palavra de manter o pacto de sangue entre eles.
Lurdes Abrolhos, mãe de Almeida, teve seu filho nos anos setenta, teve que sair da casa dos pais quando o filho nasceu. O pai, a mãe e os irmãos dela, não se conformavam, Lurdinha não falava quem era o pai do menino. Passou os nove meses caladinha, não soltava um pio sequer, a filha era um verdadeiro túmulo quando se trata de segredos, aquilo dava nos nervos do pai de Lurdinha, um dia o pai desabafou:
-- Pela luz do sol que me alumia neste instante, o dia que eu souber quem é o pai dessa criança, vou esfolá-lo vivo, vou arrancar a pele desse traste como arranca a pele de um boi. Esse patife não perde por esperar, o que é seu está guardado.
Lurdinha não se condoía com nada, as ameaças do pai, não lhe diziam respeito, entrava por um ouvido e saia pelo outro numa velocidade impressionante, nem ouvia o que os pais e os irmãos lhe falavam.
Lurdinha era daquelas mulheres de queimar o sutiã em praça pública, era de ação, não hesitava um segundo em meter a mão na cara de homens metidos a valentões ou atrevidos, de pouquíssimas palavras! Não assoprava nenhuma, extremamente econômica nas palavras e expressões. Sempre evitava olhar nos olhos das pessoas, mas extremamente curiosa e dissimulada nos modos de vigiar as pessoas.
Quando Almeidinha nasceu, mãe e filho mudaram para um bairro afastado do centro da cidade e do bairro da casa dos pais, Lurdes e o filhinho foram morar no bairro dos atropelados. Lá, neste bairro, direto e reto, uma bicicleteiro era atropelado por um carroceiro desavisado.
O ranço que Almeidinha tinha pelo escritor preferido de Olegário, começou no dia que Olegário fez um comentário sobre o nome da mãe de Almeidinha. Apesar que, tal comentário não tinha a menor intenção de associar dona Lurdes com a personagem de Nelson Rodrigues.
-- Almeidinha, o Nelson escreveu uma crônica semana passada e uma das personagens tinha o nome de Lurdinha!
-- Mesmo! Uhai, depois vou dar uma olhadinha lá, tá! Almeida garantiu ao colega que correria os olhos no texto.
Os dias passaram e nada do amigo procurar o texto para ler, na verdade, ele nem lembrava mais do texto nem da promessa de ler, seguiu os dias como dantes, estava mais preocupado com a sua sobrevivência, seu bem-estar e com seu futuro; que texto que nada! Pensava Almeidinha.
Numa sexta-feira à noite, Almeidinha encontrou-se com Juvenal num buteco do bairro, do lado de fora do bar, a rua estava abarrotada de carroças, coalhada de bicicletas, dentro do buteco, que era um verdadeiro randevu, a risaiada e as provocações corriam soltas.
Teodolino, é um carroceiro que mora no bairro vizinho, ele não tem um dente sequer, mas é o sujeito que mais escancara as duas arcadas dentárias quando solta suas risadas como ondas marítimas.
Um sujeito brancão, os pelos dos braços e do peito são tão amarelos que parecem fios de ouro, muito alto e forte, mais parece um alemão de estirpe da mais alta casta daquele país tão gelado e longínquo.
Lá pelas tantas da noite, Teodolino fala para o colega do lado:
-- Cê sabe que Lurdinha, é um nome de uma putinha nos contos do Nelson né? Cê tá sabendo, num tá ?!
O colega de Teodolino, um negro africano, concordou balançando a cabeça, apenas não sabia quem era Nelson, mas que Lurdinha era nome de quenga, isso ele e todo o bairro desconfiavam.
Juvenal, a ameba, fez que não ouviu, mas Almeidinha ouviu, e ouviu muito bem. Manteve o controle, não deixou a emoção lhe roubar nenhuma atitude, olhou para o carroceiro, para o africano e perguntou para o brancão:
-- Amigo! Por onde anda os dentes da sua boca?
Teodolino, o brancão, levantou tranquilamente de sua cadeira, como se fosse um europeu, um fidalgo, com seu chicote no ombro esquerdo, segurou o cabo de madeira do chicote com a mão direita, disparou uma lambada absurda de rápida e estrondosa em direção de Almeidinha. Almeidinha só teve tempo de desviar o rosto, as tiras de couro entrelaças estalaram nas costas de Almeidinha.
Teodolino, lentamente sentou novamente em sua cadeira, chamou uma rapariga que servia os clientes e pediu uma cachaça, daquelas que tem um escorpião de molho dentro da garrafa.
Juvenal, o inepto do grupo, cravou os olhos no bico do sapato, depois, colocou as duas mãos entre as pernas, dobrou as costas para frente, ficando todo emborcado, desfez o emborcamento das costas e mirou os olhos nos olhos do amigo.
Almeidinha, não falou um ‘a’, nem mesmo segurou um gemido ou algo parecido, não tinha nenhuma lágrima nos olhos, nem marejados os olhos estavam, a chicotada lhe cortou a camisa em toda a extensão das costas.
Levantou da cadeira, calculou a distância de onde estava e a saída do puteiro, mediu o africano de beleza espartana que acompanhava o seu sanguinário déspota, olhou para tropa de carroceiros que estavam a lhe achincalhar com piadinhas de chicotadas.
Almeidinha chamou o amigo Juvenal e saíram, entrementes, quando chegou na porta do prostíbulo, virou para o seu carrasco e lhe disse:
-- Isso não vai ficar assim não, tá ?!
Todavia, antes de sair, ouviu do carroceiro chibateador:
-- Não, não vai ficar assim não! Vai ficar vermelho, depois vermelho escuro, depois roxo, vai criar cascas, daqui uns vinte dias, volta ao normal, seu moleque atrevido.
Quinze dias depois do ocorrido, Juvenal, Olegário e Almeidinha, estavam passeando pelo bairro em uma carroça puxada pelo carroceiro que havia lhe humilhado, o africano não foi encontrado, bateu a linda plumagem, ele sabia das paranoias que habitavam as cabeças de Almeidinha e de Olegário.
Quando a carroça parou em frente ao puteiro, Almeidinha deu uma única chicotada em Teodolino, e disse:
-- De agora em diante, seu desdentado, me respeite.
Os três amigos desceram da carroça de armas em punho e foram embora. Os demais carroceiros, que estavam dentro da zona e presenciaram tudo, juraram em silêncio; um dia vamos atropelar esses três desgraçados.
O pai de Olegário, é um cara até legal, mas misterioso, de pouca conversa, e de pensar bastante. Nos anos setenta, de uma hora para outra, foi morar na capital, saiu da região meio à francesa, meio às pressas, ninguém na época entendeu, mas ele se escafedeu da cidade, retornando só vinte anos depois.
Almeida nunca perguntou nem passava pelas suas ideias, saber pela mãe, quem era o seu pai, mãe e filho, nunca combinaram, mas nunca tocaram nesse assunto.
Lurdes era uma mulher bonita, aliás, muito bonita, mas uma mulher que já nasceu com suas ideias muito claras na sua cabeça, certa vez, conversando com uma amiga, confidenciou:
-- Querida! Quinhentos anos antes que eu nascesse, essas ideias já estavam em minha mente. Pode acreditar!
Como a conversa transcorria entre as amigas regada a vinho e pão seco molhado no azeite, estava tudo certo. A amiga, Tiazinha, companheira de Lurdinha de longa data, até pensou em apimentar um pouco mais a conversa, mas no final aceitou de bom grado a confidencia da amiga, sabia, no outro dia não lembraria de mais nada.
Foi numa quarta-feira de cinza que Olegário ficou sabendo o que Almeidinha havia falado de Nelson Rodrigues. Num primeiro momento, não manifestou a menor reação, manteve-se tranquilo, assim parecia, olhou para Juvenal, deu um tapinha nas costas do amigo que acabava de lhe confidenciar a injúria de Almeidinha.
Olegário seguiu direto para casa, procurou até achar, um machado de dupla face, daqueles que cortam dos dois lados. Lavou a ferramenta até o aço ficar brilhando, passou uma lixa no cabo, afiou até o corte do machado ficar como uma navalha, aparando asas de mosquito.
Silvano, pai de Olegário, chamou o filho para buscar umas encomendas que acabara de chegar para ele. Os dois partiram em direção ao correio, todavia, Olegário levava seu machado de dupla face amarrado nas costas.
A mãe de Almeida, estava no portãozinho da casa, quando o filho estava chegando em casa, mas este retrocedeu dois passos, resolveu acompanhar a mãe até o mercado municipal para fazer as compras com ela.
Enquanto o senhor Silvano seguia em direção às suas encomendas, cheio de planos, o filho já sabia exatamente o que fazer e quando fazer com sua ferramenta de corte duplo.
Há uma quadra do correio, Olegário avistou Almeidinha, vindo em sua direção segurando a mão da mãe. Continuou caminhando como se não o visse. Entretanto, seu pai, senhor Silvano, ao avistar Lurdinha, mãe de seu amigo, empacou sem aviso, como um poste, não aluía do lugar por nada.
O amigo de Almeidinha, seguiu em sua missão, nem olhava para os lados, nem percebeu que o pai ficou para trás. Desamarrou o machado que estava preso por uma tira de couro preta, manteve a mão direita no meio do cabo e a esquerda no extremo do cabo.
O filho de dona Lurdes seguiu direto para o amigo, assim que o reconheceu, apesar de ver o machado de duplo corte, nem conjecturou em alguma coisa de ruim. Todavia, percebeu, a mãe havia parado de caminhar, ela apenas olhava para Silvano, o pai de Olegário.
O machado foi erguido ao máximo que os braços podiam sustentar sobre a cabeça de Olegário, o brilho intenso da lâmina da ferramenta ofuscou os olhos de Almeidinha. Antes que o machado rachasse a moringa do filho de dona Lordes, um grito entrou em cena.
-- Não faça isso meu filho. Ele é seu irmão! Por favor!
O maníaco por Nelson Rodrigues não titubeou um segundo sequer, juntou as duas mãos na extremidade do cabo do machado para o golpe ter mais força, sem nenhuma expressão no rosto, rachou a cabeça do irmão em duas partes, a lâmina do machado só parou quando encontrou o osso do tórax.
Lurdinha voltou a caminhar, passou pelo corpo sangrando na calçada, como se não o conhecesse, passou pelo filho de Silvano, como se não houvesse ninguém ali, quando chegou próximo de Silvano lhe disse:
-- A culpa é sua. Covarde!
Lurdes Abrolhos seguiu para o mercado, mas ao passar perto do corpo do filho, pisou em algo macio, ela olhou e não identificou o que era exatamente, de cor cinza, lembrava um pedaço de couve-flor sujo de sangue.
Lurdinha simplesmente chutou aquela coisa que estava presa no salto do seu sapato e seguiu para o mercado para fazer as compras como se nada houvesse acontecido de excepcional.