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                                O Psicopata do Celular
                                                                             1ª Parte
Quando entrou na sala, encontrou todos como todos os dias, conversando entre si, mas pelo celular, mesmo estando todos juntos num mesmo recinto, só se comunicavam pelo celular. Essa merda que inventaram só serve para atrapalhar mais ainda o convívio social dos adolescentes.

Sempre, sempre que adentrava a sala, tinha o cuidado de fechar a porta com cuidado, mas neste dia não, deixou-a aberta. Descansou os braços, depositando os livros que trazia na mesa.

Arregaçou as mangas da camisa, afrouxou os cadarços dos sapatos, aliviou um pouco a pressão do cinto da calça, desabotoou o botão da camisa que fica próximo do pescoço, tirou os óculos bifocais e colocou-os sobre a pilha de livros que já estavam na mesa quando chegou.

Quintino, nunca usou um celular na vida, nunca teve o menor interesse em possuir um, acha aquilo uma desgraça, invencionice do capeta, do pai da mentira.

No ano de 1992, passando por uma loja, foi aí que ouviu falar pela primeira vez nessa cria do diabo.  Havia uma fila enorme, pessoas comprando uma linha móvel mais o aparelho. Os compradores falavam, talvez com uma meia dúzia de gaiatos que também tinham adquirido o aparelho, mas logo vendiam a linha com o aparelho, afinal era muito caro, o aparelho e a manutenção da linha.

Quintino morria de rir dos apressadinhos. Por que? Porque quando o camarada ligava, pagava, quando recebia uma ligação, pagava. Quintino se deliciava com aquela situação pensando, como tem gente medida a besta nesse mundo.

A irmã mais nova de Quintino era um protótipo de gente metida a besta. Vivia sonhando em comprar um celular, mas como não tinha grana, colava na primeira amiguinha que tinha e ficava babando, sonhando no dia em que teria o seu.

Outra coisa que Quintino se divertia era com o formato dos aparelhos.  Na época haviam duas marcas que eram o frisson dos apatetados: o Gradiente, que tinha o formato e o tamanho de um cassetete de policial e o Motorola, igualzinho a um tijolão de seis furos.

Quintino lembra do dia que um sujeito foi detido pela polícia: o policial achou que o cara estava atentando contra o pudor, aquele volume enorme na frente da calça do sujeito causou uma certa ira no militar. Mas logo tudo foi esclarecido, era um celular, nada mais.

As pessoas que estavam no local e presenciaram tudo, acreditavam que o policial, por pura inveja, queria ficar um pouquinho com o celular em sua posse.  Nada disso! O aparelho dentro da calça do goiaba, estava mesmo indecente, uma situação patética, que só o bocó do dono do aparelho não se tocava, um verdadeiro pateta!

Em 2008, Quintino ouviu falar do tal smartphone e como o celular para Quintino era coisa de satã, do o anjo caído, pensou: deve ser uma lepra mais sofisticada do príncipe das trevas, mais obsessivo do que o primeiro, umas dez vezes mais.

Em 2010, sua amada irmã que era um protótipo de gente medida a besta, agora não era mais um protótipo, era parte do grupo de abestalhados possuidores de celular, segundo Quintino.

Devido ao fato de gostar até demais da irmã e sempre respeitar suas vontades, um belo dia, Patrícius Eulália, sua irmã, convenceu Quintino a só ver as funções de um celular smartphone.

Mostrou calculadora, agenda, contatos, e-mail, internet, bloco de notas, Word, tocador de músicas, de filmes, jogos. Por fim, a irmã perguntou ao irmão:

-- E aí Quintino! Não é muito doido, maneiro de mais, né?
-- Patrícius Eulália minha irmãzinha querida, você está feliz com essa geringonça?
-- Muito, muito, muito, era tudo que eu queria na vida!
-- Ótimo, que bom! O importante é ser feliz né?

A partir daquele dia, Quintino nunca mais quis saber ou discutir sobre aquele aparelho que ele tinha certeza que tinha vindo dos quintos dos infernos.

Sentado em sua cadeira atrás da mesa, com as pernas abertas, com as duas mãos sobre a mesa, observava despretensiosamente aquela trupe de cibernéticos.

Foda-se! Que o mercado, a vida cuide desses néscios, pensou o professor olhando ora para a parede do fundo ora para o teto da sala.

Olhou para o relógio de bolso e constatou que teria que ficar ali, pelo menos por mais quarenta e dois minutos, mas isso não lhe deixou amuado nem um pouquinho.

Fixou o olhar em Dejanira, uma garota até bonita, muito desembaraçada no falar, com seus olhinhos vidrados na produção do cão.  Dejanira só faltava entrar dentro do aparelho.

Quintino conhecia todos os pais dos seus alunos. Sabia pela mãe de Dejanira, dona Lucrécia, que a menina cozinhava muitíssimo bem, interagia muito facilmente com as pessoas. Quintino perguntava para si mesmo em pensamento olhando para a menina:

O que essa criatura de Deus tem na cabeça em querer fazer faculdade? Pior! Quer fazer odontologia! Meu Deus do céu, não sabe nada de biologia, química, física, em matemática é fraquíssima.

Não seria melhor fazer um curso técnico, ser uma proprietária de um self-service, um restaurante? Talvez, seja lá como for, chegue a concluir uma faculdade, mas como a maioria, vai terminar sendo uma chefe de cozinha ou a proprietária de um estabelecimento, e o diploma vai para o lixo.

Adagoberto coitado, o sujeito não consegue nem fazer um zero sentando na areia!  Está repetindo o ano pela terceira vez. Vai bombar de novo? Aaah, vai! Como alguém pode entrar dentro da mente de outro e colocar uma ideia fixa, todavia, absurda! O moleque quer se engenheiro no I.T.A.

Adagoberto é um ótimo vendedor, pra que esse infeliz quer ser engenheiro? Quem foi o desgraçado que plantou essa imaginação na caraminhola dele? Só pode ser um ser frustrado até a raiz do cabelo!

Esse fedelho tem tudo para ser um grande profissional em vendas. Se eu descubro quem está sabotando esse pirralho, dou-lhe um tiro, não, melhor! Dou três tiros e lhe corto uma orelha, talvez as duas!

Passou o olhar por Marinalva Francisca, ela tem um celular, mas é analógico. Apesar do aparelho ser uma criação de Lúcifer, Marinalva usa apenas para avisar a mãe quando está chegando ou saindo da escola.  Menos mal, afinal, pra tudo, toda regra tem exceção.

Francisca tem tudo para ser uma excelente médica, ela sim, precisa ter uma formação acadêmica, por ter capacidade, vocação e principalmente por ser muito aplicada.

Quintino olhou bem para todos e depois voltou a olhar para Marinalva Francisca e refletiu:

Como pode, um bando de bocós que admiram Marinalva Francisca, Honório Pestana e Clarêncio, mas continuam fazendo a mesma mesmice de sempre?  Não estudam, não aceitam ajuda dos três mais inteligentes e não largam a merda do celular por nada!

Com certeza, a universidade não é para todos, mas também não pode ser elitista e aristocrata, mas sim por competência, meritocracia. Talvez a educação deveria ser mais rígida. O sujeito bombou, tchau querido!

Quando o sinal tocou, Quintino saiu da sala como chegou, mas ao sair fechou a porta cuidadosamente: o barulho do intervalo poderia atrapalhar os alunos a navegar na porra do celular.

Quintino saiu da sala e foi direto para casa, atravessou o pátio da escola, passou pelo portão, despediu do funcionário que controla a entrada e saídas dos alunos.
Chegando em casa, deitou na cama e dormiu como se estivesse nos braços de um anjo. Duas horas se passaram como se passam dois minutos. Acordou sorrindo, acordou alegre, acordou não só para o mundo, mas para a felicidade dos abestalhados cibernéticos.

Quintino, além de bom em matemática, é inteligente, tenaz em suas missões. Apesar de odiar celular, foi um ótimo aluno em computação na faculdade.

Levantou da cama e foi direto para o quartinho de dispensa, procurou seus livros de faculdade e achou o que queria: o livro de conceitos básicos para computação.

A solução para os parvos do mundo digital, entrou na sua mente como um tiro de fuzil, e lá ficou grudado como cola de polvilho, aquela meleca.

Idealizou um aplicativo: um aplicativo que teria o impacto do fim do mundo, todavia, seria a ressureição de milhões de mentecaptos.

O aplicativo seria muito simples: depois de instalado, basta o tonto acioná-lo e o aplicativo derreteria o celular em menos de um minuto.

Após muitas horas, dias, semanas, o aplicativo estava pronto para ser testado, mas como, onde e com quem testar? Quintino havia feito um juramento de sangue: jamais comprar qualquer artefato feito por satanás.

Não passou dois minutos e teve uma ideia brilhante, foi até uma lan house num bairro distante de sua casa, criou um e-mail fictício e uma conta no youtube, Quintino odiava tanto o youtube que chamava este site de seutoba.

Colocou o programa do aplicativo lá, dizendo que estava desenvolvendo um aplicativo de jogo para celular, Freddy Krueger versus Jason Voorhees, do filme sexta feira 13.

Em menos de trinta minutos, já havia um amontoado de trouxas dizendo que processariam o dono do canal.  Alguns pais já estavam à beira da loucura, afinal o celular do filho derreteu em menos de um minuto e o filho entrou em parafuso, surtou momentaneamente por perder o celular.

Quintino calmamente apagou o histórico da navegação. Depois, com um programinha básico, embaralhou todas as informações que chegaram naquele computador, ou seja, não deixou pistas de que estivera fazendo qualquer coisa naquele computador.

Voltou para casa pisando nas nuvens e lapidou um pouco mais o aplicativo. Desenvolveu como passar o aplicativo para os babacas digitais. Chegou rápido em como enviá-lo.

A escola tinha uma intranet e cada sala, uma página no site da escola. Quintino montou algumas páginas de exercícios. Atrás dos exercícios teria um código que faria um link para onde estava o aplicativo.

Depois de fazer o download dos exercícios para o celular, assim que o aluno começasse a responder os exercícios, o código fazia um download e baixava uma imagem, junto com a imagem, estava o aplicativo.

O aplicativo começava assim que o aluno respondesse a terceira questão. Quintino, o professor convulsionado, já havia feito uma estatística: cem porcento dos alunos iam até o quarto exercício, depois respondiam chutando. As respostas dos três primeiros enunciados é que ativavam o aplicativo.

Domingo, véspera do grande dia, o professor aloprado com mobile phone, elaborou exatamente dez páginas de exercícios de matemática. Maquinou enunciado por enunciado, bem fáceis, de forma que o primeiro ajudava a resolver o segundo, e seguindo essa estratégia, todos os alunos conseguiriam resolver todos os exercícios sozinhos.

As duas horas da tarde, os exercícios e o programa estavam prontos. Seguiu até a casa de um colega, Xavier Xamã, que já tinha trabalhado na escola. Com a senha do colega, acessou a intranet da escola e colocou tudo na pasta da diretora.

-- Xavier, esses trabalhos escolares me cansam, mas esse mundo digital me deixa embotado, sabia? Disse Quintino, assim que saiu do computador.

-- Muita calma nessa hora! Estressa não, amigo, o mundo é isso aí, mas vai piorar, espera só pra ver, complementou Xamã.

O ensandecido professor com a praga que o capeta havia disseminado na terra, arriou seus pesares, olhou o amigo da ponta dos sapatos até o topo da careca, fez o caminho de volta com os olhos e sapecou um convite ao colega:

-- Que tal uma cerveja pra comemorar o fim do mundo?
-- Demorou! É pra já! Tem meia dúzia no freezer, geladiiiiinha, falou o amigo com a boca úmida e salivando como um cão raivoso.

As sete horas da noite o professor desvairado, mas com os nervos relaxados como corda de viola solta, voltou para casa. Olhou para Patrícius Eulália de relance, foi até o quarto, pegou algumas peças de roupas e zarpou para o banheiro. Tomou banho na água fria, enxugou com a toalha de rosto, colocou a cueca ao contrário e do avesso, vestiu o calção, a camiseta com um coração enorme no peito, voltou para o quarto e dormiu o sono dos inocentes.

Segunda-feira acordou cedinho, tomou outro banho, vestiu a roupa de forma correta, tomou um café caprichado, só frutas.

Quintino evaporou o mais rápido possível para a escola, cumprimentou todos que encontrava pela frente e foi direto para a diretoria.

-- Senhora Sebastiana Tobias, bom dia! Ontem eu deixei na sua caixa da intranet os exercícios para os alunos. Agora é com a senhora!

Sebastiana é uma diretora com sangue nos olhos, faca nos dentes, de tão rigorosa, de tão disciplinadora. Nunca esteve nas forças armadas, mas sua postura é de um militar durão.

-- Senhor Quintino, obrigada pela informação.  Os exercícios serão distribuídos antes das nove da manhã, as nove e cinco todos os professores serão informados e os alunos terão quinze minutos para fazer o download.

-- Ótimo, senhora Sebastiana Tobias, agora me dê licença, pois tenho apenas dois minutos para iniciar minha primeira aula. Passar bem. Em pensamento, Quintino morria de vontade de bater continência e juntar os cascos para a diretora.

O espeloteado do professor, chegou na sala como dantes, calmo, passos firmes e observando a sala como um altivo, um nobre de sangue azul.

Desta vez, não esqueceu, ao passar, fechou a porta lentamente, foi até a mesa, entrementes, passou entre a primeira e a segunda fila das carteiras, abriu totalmente a janela que estava com apenas uma folha aberta e a outra ainda no trinco.

Sentou tomando muito cuidado, como se a cadeira estivesse para desmanchar a qualquer momento. Olhou para seus alunos como uma trupe de patetas cibernéticos.

Resistiu ao sorriso que tentava expressar toda a sua futura felicidade: conseguiu que fosse insignificante, houve um leve movimento do canto esquerdo da boca para cima, imperceptível, mas aconteceu na frente de todos.

Tirou o diário, fez a chamada, em seguida se levantou, foi até o quadro, passou a matéria que ajudaria os alunos a resolver os exercícios.

Após explicar o conteúdo teórico, informou a todos:

-- Meus adoráveis alunos, dentro de poucos minutos, vocês receberão um aviso no e-mail de vocês para baixar os exercícios, quando chegarem em casa faça-os e me devolvam amanhã mesmo.

Quintino estava careca de saber que os pivetes, assim que baixassem os exercícios fariam ali na escola mesmo.

As dez horas e vinte cinco minutos, a felicidade do professor excêntrico começou a acontecer: um aqui, outro acolá, até que de repente, vários celulares estavam derretidos nas mãos dos moleques.

Quintino não se continha de tanta felicidade: tanto que correu para o banheiro dos professores e liberou a mais gostosa gargalhada da vida, longa, quase teve uma convulsão de tanto que os músculos contraiam.

Dos alunos que estavam no intervalo, nenhum foi para sala de aulas. Era uma gritaria, choro, ranger de dentes, que parecia o fim do mundo. O apocalipse não seria tão medonho como a expressão de desespero da gurizada.

A diretora, senhora Sebastiana Tobias, seguiu a passos largos para o pátio da escola para se inteirar dos fatos. Olhou atentamente quando um aluno acionou o aplicativo, pensando que era um jogo. Freddy Krueger vs Jason Voorhees sexta-feira 13. A cena era assim:

Logo que o aplicativo começava a rodar, aparecia o Freddy cortando a própria garganta e dizendo “cansei dessa vida”, a cabeça do Freddy rola e bate na perna de Jason que está sentado no chão com a cabeça entre os joelhos dobrados.

Jason pega a cabeça do Freddy coloca-a debaixo do braço esquerdo e com a mão direita, puxa uma faca e penetra a lâmina de quarenta centímetros no peito até atravessar o coração e diz: “estou cansado dessa vida”.

Quando Jason cai morto abraçado com a cabeça de Freddy, há um curto circuito e o aparelho começa a derreter. É impossível parar o processo depois que a cena é passada na íntegra.

As aulas foram canceladas, os pais dos alunos correram para pegar seus filhos, muitos pais da escola já levavam o filho para uma loja para comprar outro celular, pois alguns bocós estavam jurando que se não tivessem um celular até o final da tarde, iriam suicidar.

Quintino ouvia as ameaças a uma certa distância, ouvia tudo muito claro e ficava na torcida: suicida burro, vai pangaré de quinta categoria, se mata logo, seu imprestável!

Quintino, o educador pancada, chegou em casa mais rápido do que o normal, precisava liberar golfadas de gargalhadas, havia muita gargalhada represada, se não liberasse logo, com certeza, o peito iria rachar no meio.
Durante horas, o abestalhado do professor, era só gargalhada.

 Falava coisas que eram impossíveis de decifrar, passou o dia inteirinho em casa, recebendo ligações sobre as novidades que estavam acontecendo em outras escolas também.

Seu aplicativo havia viralizado em várias escolas como uma epidemia.

O sonho de Quintino estava realizando.
Eder Rizotto
Enviado por Eder Rizotto em 05/08/2017
Alterado em 09/04/2018


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Imagem de cabeçalho: raneko/flickr