Textos



Anônimos.
 
Era tarde e caia uma chuva fina e muito fria, melhor senão chovesse, mas a cadência da chuva era a mesma da que caiu pela  manhã, fina e fria.

O mês era de estação quente e este ano estava muito quente, mas naquela semana um tantão de chuva e frio chegaram e aportaram em nossas paragens. As janelas da casa ficavam embaçadas durante os dias e nas noites inteirinhas. Para ver qualquer coisa do lado de fora da casa, tinha que esfregar a mão no vidro, mas a mão que não estava acostumada com tanto frio, doía.

Era tanta chuva que o mato já acordava deitado. A criação andava por perto, as galinhas não saiam debaixo da casa. Rubião, manso e observador, ficava o tempo todo deitado no paiol.  Só saia se o pai fosse pra lida com as vacas. Assim que voltava, deitava com as patas dobradas debaixo da barriga, o queixo e as orelhas no chão.

Tristeza e alegria disputavam espaço no coração, afinal, chuva é bão pra lavoura, pras nascentes e até pradurmi, mas já estava demais! Aquele frio nos ossos era de doer! A botina não secava nunca.  Pensa sô, calçar uma botina moihada logo de manhã cedin, antes das cinco da manhã!

Devia ser três ou quatro horas da tarde, caminhou cabisbaixo, o corpo meio arriado, não usava capa de chuva.  Sua botina, marrom de tanta chuva, a calça que era branca, estava bege, camisa xadrez, quadrados vermelhos com azuis e listras amarelo claro, abotoada até o pescoço. Uma mão estava no bolso, a outra segurava um raminho: um talinho que tinha mania de pegar e ficar mastigando, depois cuspia fora.

Caminhou meia légua com água nas costas que Deus, nosso senhor mandava sem dó. A  picada que levava até o córrego estava muito escorregadia, passou por dentro do pasto dos bezerros, pulou o córrego d’Abadias, subiu uma rampa danada de íngreme, precisou se agarrar na braquiária, mas venceu. A chuva e o frio já não incomodavam seus pensamentos. Só pensava em chegar, bom seria se não chegasse.

O cabelo era vermelho como sangue vivo, vermelhin, vermelhin. Botinha preta de borracha, não gostava de usar meia, só pradrumi. Anágua branco gelo, vestido vermelho que ia até os joelhos, de gola alta com renda, as mangas iam até os cotovelos, na ponta tinha um babado de renda igual da gola e da barra do vestido.

Não caminhou muito, melhor se caminhasse muito, ou se nunca chegasse. Passos miudinhos, com as duas mãos segurava o cabo da sombrinha.  Estava do outro lado do córrego d’Abadias, não precisou transpô-lo.  Zefa seguia ao seu lado,  roçando-lhe as pernas, ora na direita ora na esquerda, com seu focinho sempre gelado. A moça olhou para fora da sombrinha, no rumo do céu: só via chuva, chuva que não acabava mais!

Neste dia não pulou a cerca, nem lhe trouxe flores, nem nada, nem tirou o chapéu, mas também não escondeu o rosto, aprumou-o pra frente. Colocou as mãos na cintura dela, ficou meio distante, meio amuado, talvez não queria molhá-la. Vai saber! Ela colocou uma mão em cada ombro dele, apoiou a ponta dos cotovelos em seu peito, bem apoiados. A princípio não se olharam, apenas respiravam baixinho e devagar com os lábios fechados. A chuva molhava o rosto dela, a sombrinha descansava em cima de um cupim fechada.

Não falaram nada.  Não conheciam palavras para expressar os seus pensamentos e se as conhecessem, também não diriam. Não combinaram encontrar naquele dia nem olhar para a chuva naquele mesmo instante. Nem combinaram sentir a mesma dor no peito, algo lhes cortava sem sangrar. A chuva que deslizava do céu misturava com mais uma chuvinha de gotas salgadas.

Eles se olharam por pouco tempo, mas tiveram uma longa conversa apenas com as expressões dos olhares. Olhos nos olhos, assim decidiram se despedir, sem alegrias ou tristezas, sem promessas, incertezas ou certezas.

Tirou as mãos devagar da cintura dela, firmou o chapéu. Algumas gotas salgadas lhe cortavam a pele da face enquanto ela ainda descansava suas mãos no ombro dele. Não permitiu que nenhuma lágrima vertesse, admirou a coragem dele verter lágrimas naquele momento. Acreditava que haveria um momento mais oportuno para deixar seu pranto romper trazendo seus verdadeiros sentimentos por ele.

Não partiram ao mesmo tempo: ela foi primeiro e ele ficou a contemplar as águas que escorriam entre as braquiárias e a sola de sua botina. Não quis vê-la pelas costas e nem a pontinha da sombrinha dela.  Só se virou quando sabia que seus olhos não a alcançariam mais.

Retornou mais lento quando foi ao encontro dela, não mastigou os talinhos. Com as duas mãos nos bolsos da calça seguiu seu destino desconhecido, mas em seus pensamentos tinha uma certeza: jamais passaria outra situação dessa, por mais forte que seu sentimentos e desejos fossem, agora já não era mais o mesmo.

Naquele instante em que os dois se olharam e se despediram, senhor Uziel acompanhava tudo, com sua capa de chuva amarela, montado em seu cavalo, chamado Soberano de cor branca com marrom. Sabia o que se passava naquele instante e seu pesar era grande pela filha, mas pensava: fazer o quê?  A vida não manda o roteiro antecipado da nossa passagem por esse mundão de Deus.

Quando chegou em casa, foi direto para o quarto, sua irmãzinha caçula agarrou na barra de seu vestido e acompanhou-a até o quarto.

-- Anelise, hoje não! Fique com a mamãe, depois brinco com você, eu juro, tá!

A mãe, senhora Tainara, sentiu uma certa perturbação em seu coração quando viu sua filha adentrar o quarto dela como nunca havia visto dantes. Como se estivesse abraçando a si mesma, senhora Tainara dirigiu-se no rumo do quarto da filha, entrementes, senhor Uziel, seu marido, adiantou se e interveio em seu caminho dizendo:

-- Tainara, hoje não! Deixa-a só! Somente a solidão poderá lhe abraçar o suficiente para afagar-lhe o coração que já está com seus sentimentos em desatino.

Senhor Uziel é um homem austero, mas de ações equilibradas e bem analisadas antes de tomar, pois suas palavras, depois de lançadas no mundo, não voltam mais.  Nunca engoliu suas próprias afirmações.

Senhora Tainara é uma mulher alta e esguia, sempre usou roupas de cor clara que cobrem todo o corpo: gola alta, com mangas compridas, com lacinhos azuis ou verdes nas extremidades dos vestidos, no pulso, na gola e na barra do vestido. Mulher de modos extremamente simplórios, mas de uma inteligência absurda. Uziel sempre a admirou devido essas duas qualidades da esposa.

Quando chegou em casa faltava pouco para a noite abocanha-lo, chuva fina e fria acompanhava em seu encalço. Colocou o chapéu no mancebo da sala, retornou até a entrada da casa e tirou todo o excesso de terra da botina, esfregando a sola num enxadão improvisado, com a lâmina voltada para cima, preso em um toco de sândalo.

Foi até o fogão de lenha e sentou perto do forno, ficou olhando as madeiras queimando, ora umas estalavam, ora outras se decompunham em carvão e finalmente em cinzas. Ficou ali, e sem perceber, sua camisa e sua calça já estavam secas, a botina não. Por um momento sentiu calor, mas os pés sentiam frio, muito frio.

Dona Íris não sabia de nada e também não percebeu algo incomum no filho ao penetrar na cozinha. Senhora de coração grande, paciente e de muita sabedoria, era uma de suas qualidades mais admirada pelos conhecidos.

-- Filho! Tire suas botinas e coloque-as sobre a chapa do fogão! Olhe, pegue este chinelo e calce antes de levar as botinas até o fogão.

Obedeceu a mãe e em seguida sentou-se em um tamborete de pé de madeira escura com assento em couro branco. Os pelos do animal ainda estavam no assento que virou tamborete. Rubião entrou na cozinha, cheirou as mãos de dona Íris, lambeu os pés molhados daquele que estava sentado no tamborete e olhou rápido e atentamente para a porta dos fundos. Era o senhor Higor, seu dono que chegou.

Senhor Higor beijou levemente a testa de dona Íris, passou a mão direita na cabeça do filho, fazendo o cabelo dele ficar todo bagunçado e espetado para cima.

Senhor Higor é homem de pouca conversa, trabalha muito, gosta de ouvir pessoas inteligentes, mas despacha rápido pessoas tolas e inconvenientes. As vezes é até bruto, entrementes, não há pessoa melhor no mundo, não nega ajudar quem precisa e lhe pede uma mão.

-- Filho, depois de amanhã o senhor Uziel vai mudar, ele vendeu a fazenda, sei que você está sabendo. Quando vai lá? Você precisa despedir da família dele!  Eles sempre foram ótimos vizinhos.

-- Já fui pai. O senhor deveria ir pela manhã, enquanto eu toco o gado pra vacinar.  O dia vai ser de muita lida, mas não se preocupe, eu busco e aparto as vacas dos bezerros e vacino o  touro primeiro, depois os bois e as vacas. Os bezerros por último.

Senhor Higor sabia que o filho poderia ter despedido da moça, mas do pai da moça, da mãe da moça e da irmã da moça não! Uma certa decepção e desapontamento pairava na aura do filho. Conhecia o filho o suficiente e ali, naquele momento, permitiu uma mentira do filho, que encobria sentimentos que lhe machucavam demais naquele momento. Melhor seria não expô-los diante de todos.

Na manhã seguinte, senhor Higor sentia seu coração ser esmagado, ao ver o filho trabalhado com tanta intensidade: como conduzia o cavalo, lidando com o gado, zelando dos bezerrinhos novos, sua voz tão firme com os touros. Quanta energia seria preciso gastar para seu filho vencer aquele dia e arrefecer o coração?

Com a mão esquerda, segurava as rédeas firme, mantendo o cavalo sempre de cabeça erguida.  Trabalhou determinado, todavia, não machucou ou desrespeitou sua montaria.  Eclipse era um manga-larga tão preto que às vezes se passava por azul petróleo. Mesmo com a maior dor que carregava no coração, ao descer de Eclipse, alisava-lhe o pescoço levemente e depois passava a mão sobre seus olhos descendo até as ventas.

As duas horas da tarde, Uziel e Higor trocaram um forte abraço, sentaram-se na varanda e fitaram por alguns instantes uma bela árvore que tinha bem a frente, um Jatobá, único na região.

-- Então o senhor já comprou a casa e o comércio que vai tocar na cidade? Perguntou senhor Higor.

-- Sim, senhor Higor, agora estou nas mãos de nosso senhor.  Outra vida, outro começo e espero que seja a última. Nossos filhos precisam terminar o cientifico, não quero que a mais velha faça o normal, ela pode mais.

-- Concordo, o senhor está certo, também penso em mandar meu filho para a cidade estudar. Peço sempre ao nosso bom senhor que ele possa se tornar um bom agrônomo e tocar as terras com novos conhecimentos. Senhor Higor falava e refletia ao mesmo tempo olhando para o pé de jatobá.

Com um forte aperto de mão, senhor Higor despediu-se da esposa, da filha mais velha e da pequetitinha.  Senhor Higor não conseguiu manter os olhos nos olhos da filha mais velha, mas abraçou a pequeninha como se fosse a mais velha. Montou em seu cavalo, tirou o chapéu para despedir e saiu em disparada rumo ao córrego d’Abadia.

Quando a boca da noite já apressava para engolir qualquer luz do dia, senhor Uziel e família adentrava a cidade de Guimarânia, na mesorregião do triângulo mineiro com alto Paranaíba e microrregião de Patos de Minas. Uma cidade onde seus habitantes são orgulhosos por serem conhecidos por caipiras.

A casa ficava entre as ruas Guaranis com rua Tupinambás.  Uma casa simples, porém espaçosa: três quartos, uma sala, uma copa, cozinha, dois banheiros e alpendre. As paredes eram de cor camurça, teto azul muito claro, parecia a tampa do céu. O piso era de tábua corrida. No alpendre o piso foi feito com cacos de cerâmicas vermelhas, brancas e nas bordas de cerâmicas pequeninas de cor preta.

O comércio, uma loja de produtos agropecuários, ficava na esquina da rua Conselheiro Rufino com a avenida Aimorés. Parecia um grande galpão, todavia, com suas divisórias de um metro de altura, separava bem cada produto. Um balcão enorme de quatro metros de extensão por quarenta e cinco centímetros de largura.  Ficava em frente à rua Conselheiro Rufino, e mais três metros de extensão virado para a avenida Aimorés, contornando toda a loja num formato de triângulo.

Nas duas primeiras semanas senhor Hector, antigo proprietário do comércio acompanhou e passou tudo que podia para o senhor Uziel. No período da manhã orientava no atendimento aos clientes, no período da tarde, a parte administrativa.

A família acordava cedin, as cinco da manhã, tomavam o café todos juntos, todos os dias, até nos domingos.  O pai e a mãe seguiam direto para a loja, sempre abriam o comércio antes das seis. Anelise seguia para o colégio, cursava o último ano do fundamental. Sua irmã pegava o ônibus para Patrocínio, estava cursando administração na UNICERP centro universitário do cerrado, à tarde fazia um curso de contabilidade, a pedido do pai para ajudá-lo no comércio.

Trezentos e sessenta e cinco dias se passaram. Para uns, foram lindos dias de aprendizagens, descobertas, novas amizades, horizontes de tão bons que às vezes, quase podiam ser tocados, para outros, longos e indiferentes: as cores não tinham brilhos, os sentimentos não tinham porque se aflorarem, nada era igual ou bom com dantes.

No ano seguinte de nosso senhor, o filho da senhora Íris deixava a fazenda que ficava na cidade de Monjolinho de Minas com destino a Patos de Minas. Na manhã daquele dia, Eclipse manteve os olhos fechados e cabeça arriada enquanto seu dono lhe fazia um carinho. Rubião deitado com as pernas escondidas debaixo da barriga, não saiu do paiol naquela manhã.

Senhor Higor deu lhe um forte aperto de mão, e lhe disse ao pé da última porteira:

-- Meu filho! Siga firme na sua estrada, na sua volta tenho certeza que serás um bom agrônomo. Seu irmão Kevin já está grande o suficiente para me ajudar na lida da fazenda.

-- Meu filho, estude, mas não perca a oportunidade de conhecer as pessoas, dê oportunidades para elas também lhe conhecerem. Este mundo é cheio estradas com suas encruzilhadas e não sabemos onde vão dar, mas precisamos segui-las firmes e convictos com nossas escolhas. Aconselhou sua mãe.

Kevin, estava longe, mas as vistas o alcançava, montado no filho de Eclipse, usando o chapéu do irmão atolado na cabeça, a parte da frente do chapéu apontado para as patas de Mistério seu cavalo branco coberto de pintas pretas. Acenava com a mão direita dando adeus.

Antes do almoço, chegou na cidade.  Seguiu a pé para a casa da tia, irmã de sua mãe, que ficava na avenida Paranaíba, que fica oito quadras da rodoviária.

Tia Noemi lhe recebeu com um sorriso que ia de uma orelha a outra. Abraçou-o fortemente e com tanta paixão que molhou um pouco a camisa do sobrinho com lágrimas. Era uma viúva aposentada, mas gostava de cozinhar sob encomenda para festas, as pessoas da cidade que lhe conheciam, adoravam seu tempero.

Emily, sua prima estava feliz com a chegada do primo, mas foi mais contida do que a mãe.  Após um abraço, pegou sua mala e levou ao quarto que seria dele.

O almoço foi uma verdadeira festa para os três, assim pensavam Emily e tia Noemi. Conversaram bastante durante a sobremesa, ele falou sobre os pais, sobre o trabalho do campo que deixara agora para fazer faculdade, falou do irmão Kevin, que já lidava bem com o gado e montava muito bem.

Os semestres chegavam e saiam na mesma velocidade dos anteriores. Estudava em período integral e à noite reforçava os estudos. Saia pouco, conversa pouco com Emily e com a tia Noemi.

Uma vez tia Noemi tentou convencê-lo a usar outro tipo de roupa, mas foi em vão. Seu sobrinho só usava camisa xadrez, quadrados vermelhos com azuis e listras amarelo claro, abotoada até o pescoço e calça branca.

Era muito prestativo quando alguém lhe pedia ajuda. Certa vez, sua prima lhe pediu ajuda em matemática, ela sofria com essa matéria. Ele foi tão atencioso, prestativo e inteligente para lhe mostrar onde ela equivocava com as regras, que além de aprender, passou a gostar dessa disciplina.

Nos finais de semana, senhor Uziel expunha a contabilidade à sua filha mais velha, dedicada e muito próxima do pai, refazia o que estava errado e mostrava ao pai, porque errou e depois refaziam juntos. Estava no último ano de contabilidade, mas o curso de administração faltavam três anos.

Anelise surpreendeu todos da casa num sábado. Saiu do seu quarto por volta das quatro horas da tarde, apareceu na sala usando um coturno cano alto preto com cadarço morrom sem meia, unhas com esmalte preto, batom preto, um piercing bem na frente nariz, lápis preto contornando os olhos, cabelos despenteados. O vestido era preto e ia até os joelhos, a gola era estilo gola de padre, detalhe em branco, na cintura, uma fita larga de cor roxa.

Os pais a princípio olharam bastante, mais para a gola e a fita roxa, mas logo voltaram a fazer o que estavam fazendo, tomando o lanche da tarde. Sua irmã mais velha, disse:

-- Você fica muito bem de preto. Você está preparada para os risos e aplausos que vai causar na escola?

-- Minha doce irmãzinha! Ai daquele que fizer piadinha de mal gosto. Meu coturno tem biqueira de aço e não terei o menor remorso, se precisar,  rechaço algumas canelas a ponta pé!

Senhor Uziel e a senhora não se agastaram com o novo look da filha caçula, afinal, suas notas eram ótimas, ela gostava de ajudar o pai na loja e suas amigas e amigos eram todos conhecidos.

No último ano de faculdade de agronomia, houve um incidente com o sobrinho de dona Noemi. Devido ao fato dele sempre usar as mesmas roupas e um cinto com uma fivela enorme, alguns colegas faziam piadinhas com ele, embora ele nunca levara a sério. Mas um dia o caldo engrossou: Zaqueu, um calouro do primeiro ano de faculdade resolveu fazer além de piadas com o cinto do colega, cismou de arrancar-lhe o cinto, dizendo:

-- Oh veterano, esse seu cinto aí! Que mais parece uma tampa de marmelada, não combina com a turma, vou tirá-lo e lhe dar um outro bem decente para um veterano.

Zaqueu partiu para cima do caipira de Monjolinho de Minas como se fosse tomar doce de criança.

Vaqueiro deste pequeno, o primo de Emily jogou Zaqueu no chão como um bezerro, mantendo os braços e as pernas imobilizadas do atrevido.  Não demorou muito, Zaqueu deu lhe três tapinhas, se rendendo à brincadeira.

Quatro anos se passaram. Já formada em administração e com um curso técnico em contabilidade, a filha do senhor Uziel administrava o comércio sozinha, e senhor Uziel tomava conta das vendas, às vezes corria nas fazendas da redondeza vendendo e representando alguns produtos de sua loja.

Anelise ajudava bastante na loja, principalmente quando o pai saia para fazer contato com alguns produtores.  Sua irmã mais velha não era muito dada a vendas e o pai lhe poupava mantendo a caçula no balcão no período da tarde.

Em dezembro do ano seguinte, a turma de agronomia do sobrinho de dona Noemi se formava. O dia do vaqueiro agrônomo retornar chegou.

Antes de partir, comprou um cachorrinho, um boxer, para fazer companhia para a tia e a prima que foram tão amáveis. Já na saída da casa, pediu a tia que chamasse o cachorro de Capitão. Avesso a abraços, na hora da partida abraçou a tia longamente, beijou a testa da prima. Partiu sem olhar para traz.

Chegou na porteira da fazenda as quatro horas da tarde. Chovia uma chuvinha fina e fria, o vento vinha pelas bandas do córrego d’Abadia. Caminhou devagar contra o vento, atravessou o córrego, tentou subir o barranco que estava escorregadio, tentou uma, duas três, não completou o quarto passo, caiu de joelhos, a calça branca ficou cor de terra molhada. Agarrou firmemente na braquiária e transpôs o barranco, achegou da cerca de arame farpado, mas não a tocou.

Retornou pelo mesmo caminho, ao atravessar o córrego.  Eclipse o esperava, caminharam lado a lado, ouvia de longe o latido de Rubião.   Não demorou muito, logo logo Rubião lhe lambia as mãos e corria em círculos.

Seu pai, senhor Higor, lhe deu as boas-vindas com um forte aperto de mão e alguns tapas nas costas. Dona Íris, sua amada mãe, lhe cobriu de beijos e abraços. Seguiram para a cozinha, o filho ficou bem pertinho do fogão de lenha, tirou a botina e colocou-a em cima da chapa quente. Sua mãe pegou doce de figo, de goiabada, bananada, queijo fresco e cajuzinho cristalizado que o filho adorava.

Quando Kevin chegou, o caçula tentou, mas não foi forte o suficiente, chorou baixinho e abraçou o irmão mais velho. Depois, enxugou o rosto com a própria camisa xadrez, igual à do irmão mais velho.

Kevin agora já era um rapagão. Aos seus vinte anos de idade, já tinha terminado o ensino médio e pediu ao pai para não ir para a cidade grande fazer faculdade. A experiência do pai via que o caçula era um matuto, um caipira natural, um homem da terra que conhecia os animais, mais que os doutores da veterinária.

Os vizinhos do senhor Higor, começaram a procurar o agrônomo para ajudar com questões da terra, plantio, colheita e armazenamento. Era mais conhecido, entre os fazendeiros por agrônomo.

Trabalhava de manhã cedo com Kevin, à tarde seguia para a cidade de Monjolinho de Minas para dar orientações aos produtores da região. Não gostava de receber seu trabalho em dinheiro, gostava de negociar, vaca, porco, galinha, madeira, tudo que uma fazenda precisa. O dinheiro era pouco usado e ficava sempre no banco.

Senhor Uziel prosperava em sua vida de comerciante, a filha mais velha administrava muito bem a loja, agora, além de produtos agrícolas, tinha todo tipo de ferramenta para fazenda e trabalhava com as melhores marcas de defensivos agrícola.

Analise foi fazer faculdade de matemática, mas seu sonho era estudar física. Dizia à irmã: assim que terminar esse curso sigo para São Paulo fazer meu curso de Física. Analise era a mesma pessoa de seis anos atrás. As mesmas roupas, sempre responsável com os horários na loja e com o curso noturno de matemática em Patos de Minas. Ia e voltava no ônibus da prefeitura todos os dias. O pai lhe ofereceu um carro, mas Analise gostava de estar na “muvuca” do ônibus municipal.

Os anos se passaram, o agrônomo era um homem respeitado e conhecido em toda a região.  Tinha lá seus trinta e cinco anos de idade, solteiro e calado como sempre. Seu irmão Kevin, casara e já tinha um menino e uma menina, Benjamin e Luna
.
Maio era o mês da maior festa na região, a Fenamilho. Senhor Uziel resolveu montar um stand para divulgar seus produtos e técnicas de administração para pequenas chácaras, fazendas e associações de moradores voltados para a produção de produtos agrícolas.

Com muito custo, senhor Uziel convenceu sua filha mais velha a ficar à noite no stand, afinal, uma administradora formada e com prática vale mais que muitas pessoas bem-intencionadas, sem a menor condição de explicar os por quês das ciências da administração no dia-a-dia.

Kevin comparecia à festa do milho todos os anos, com a esposa Flora e os dois filhos seguiram juntos, mas neste ano levou o irmão mais velho. Kevin levou a esposa para ver o gado, os cavalos e os porcos, falava animado com o filho Benjamin, Luna prestava mais atenção que o irmão. Kevin trocava olhares com a esposa, Flora percebia que Luna já demonstrava tino com a criação. O pai sorria e pensava: será que terei uma mulher lidando com o gado?

Começou a chover fino. O frio que vinha das bandas lá do córrego d’Abadia, juntou-se com a chuva, em pouco tempo os vidros estavam todos embaçados. A meninada fazia desenhos, flores, corações cortados por setas, carinhas de meninos rindo e outras chorando, a gurizada tomou conta de todas as vidraças e vidros dos carros.

O ponteiro do relógio da matriz batia nove horas, quando o filho do senhor Higor entrou num stand. A chuva, o frio e o vento que sopraram das paragens da roça do pai lhe apertaram o coração. As pernas ficaram bobas, uma vontade de chorar lhe apossou, lembrou de coisas que não queria lembrar: sentiu o cheiro do mato molhado, sentiu água de chuva descendo pelo rosto, sentiu o gosto dos talinhos que mastigava, voltou no tempo que sempre manteve dentro do coração trancado a sete chaves.

Quando adentrou no stand, as lembranças esvaíram-se como fumaça.  Na sua frente havia uma linda mulher que vertia lágrimas que foram um dia contidas e represadas para o dia que o encontrasse. Vestida com um vestido branco até os joelhos, um cinto na cintura que moldava a silhueta de um corpo feminino perfeito.

Ele não chorou, sorriu como nunca sorriu em sua vida, deu mais dois passos para frente, segurou a mão esquerda dela e com a mão direita, afagou a pele sedosa e molhada do rosto de sua eterna amada.

De mãos dadas andaram sem saber para onde por várias ruas  da cidade, sob a chuva fina e fria. Não falavam nada, apenas riam da chuva, e riam por rir.

Naquela noite de chuva fina e fria, ele beijou sueu amor pela primeira vez. Pela primeira vez lhe deu um abraço e lhe fazia juras de amor baixinho ao pé do ouvido de sua eterna namorada.

Naquela noite, ela chorou por todos os dias em que esperou o amor de sua vida. Verteu todas as lágrimas que um dia represou. Naquela noite teve seus sonhos que imaginava todas as noites.

Eles se casaram, três meses depois, tiveram três filhos, Uriel, Ubiratan e Úrsula.
 
 
Este conto é dedicado ao meu irmão Lutero Rizotto.
 
Eder Rizotto
Enviado por Eder Rizotto em 04/05/2017


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Imagem de cabeçalho: raneko/flickr