Textos



Quinta-louca.
 
     Por volta das quatro horas, Juvenal, pai de Ronaldo, estava na cozinha esperando o filho.  Naquela tarde Ronaldo teria uma conversa séria com o pai.
     O filho chegou as quatro e dez, o pai era flexível com horários, principalmente com os filhos. Ronaldo chegou com sua camisa vermelha com listras verdes horizontal e vertical, botina amarela, calça jeans e um cinto com fivela tipo tampa de marmita. Cumprimentou o pai e sentou num ângulo reto para o senhor Juvenal.
-- Meu filho, tenho te observado com mais carinho e detalhadamente de uns meses para cá. Acredito que já está na hora de você agir como um homem responsável e com atitudes mais sérias, afinal, você já completou dezoito anos.
-- Mais é claro meu pai, sempre estou fazendo o que me pede da melhor forma possível e com o maior respeito, ou há algo que o senhor não está gostando? Se estou agindo errado, quero reparar e fazer o certo continuamente, meu pai!
     Não! Não, não, você faz bem seu trabalho, mas quero passar o caminhão para sua responsabilidade. Você mesmo vai negociar e fazer as entregas. Quero ficar mais tempo na roça com sua mãe e com a lida, essas idas e vindas da cidade tem me cansado.
     O caminhão era um Ford, mas as pessoas tratavam o caminhão por Fordão: carroceria de madeira, cabine verde escuro, era famoso entre os aficionados pelos caminhões Ford, quando tinha a “quinta louca”.
     Quinta-louca era a quinta marcha adaptada, o caminhão corria muito mais. Sem a quinta marcha original, o caminhão chegava no máximo a oitenta km por hora.      A quinta-louca chegava a cento e vinte, era um absurdo de bom entre os motoristas.  
   Ronaldo não disfarçou o contentamento. Agradeceu o pai pela confiança e lhe garantiu que continuaria tão responsável e sério quanto antes.
     Senhor Juvenal tinha duas casas: a da fazenda e uma na cidade.  Ronaldo moraria na cidade com as irmãs que estavam estudando e o pai ficaria cuidando da roça com seus funcionários.
Ronaldo era um sujeito forte, pele escura devido a lida de muitos anos na roça.       Desde pequenino ajudava o pai: plantavam, tomate, chuchu, quiabo... eram hortifrutigranjeiros. Plantavam conforme o clima e a estação. Quando não estavam plantando, estavam colhendo, carregando as caixas até o caminhão, do caminhão até o mercado. Entra dia sai dia, a labuta era a mesma, de sol a sol.  Nunca reclamou, mas sempre acreditava que um dia seria o motorista do caminhão. E este dia chegou.
     Passada a euforia, a rotina voltou: passou a plantar menos, a colher menos, mas passou a carregar mais, descarregar sozinho, fazer entregas espalhadas, não era só no mercado, mas para alguns sacolões, mercearias e supermercados.
Entre uma entrega e outra, passou a assuntar com os colegas motoristas sobre entregas, gasto de pneus, se o motor era econômico, assuntos de motoristas nunca terminam, sempre tem algo mais para falar.
     Ronaldo gostava de conversar com uns amigos que ficavam numa barraquinha de pastel frito, perto do mercado municipal. Lá, além da prosa tinha a Bernadette! Uma mulata danada de bonita, cabelos longos até a cintura, lisin, lisin, olhos escuros como duas jabuticabas, lábios finos, mas a boca era grande, nariz finin finin, parecia uma fadinha, o narizinho dela parecia tirado dos contos de fada.
       O filho do senhor Juvenal olhava-a de soslaio, como quem não quer nada, mas não a perdia de vista. Ela! Muito arisca, olhava-o de viés, percebia que Ronaldo ficava lhe cevando. Tudo que almejava era uma oportunidade junto a morena que a cada dia a danada mais bonita ficava.
     Quinta feira senhor Juvenal informou que as entregas seriam todas no mercado municipal. Passou os pedidos para o filho e seguiu para o galpão onde cultivava as mudas. Ronaldo carregou o caminhão, trocou um dedo de prosa com a mãe e seguiu para a cidade.
     As oito horas da manhã já tinha descarregado todo o caminhão, recebido e teria um bom tempo livre. Seguiu para a barraca de Bernadette. Encontrou uns amigos, começaram a conversar, mas pela primeira vez, Bernadette não lhe tomou a sua atenção. Ronaldo estava extasiado com a tal ‘quinta-louca’. Aquilo tomou ele por completo, Ronaldo foi sequestrado pela novidade, estava abestalhado.
     Bernadette só observava a alegria do seu admirador inconteste. Ela relevou. Assunto de homem com bola, carro e caminhão, o melhor a fazer é sair de perto, os homens se tornam verdadeiras crianças!
     Quem começou a falar sobre a quinta-louca foi Maçã do Amor, um sujeito cabeçudo, alto e magérrimo.  Todas as vezes que contava uma piada ou um assunto que gostava, seu rosto ficava vermelhinho. Ronaldo era só atenção, era Deus no céu e Maçã do amor na terra.
     Ronaldo ficou um expert em relação de marchas, em menos de duas horas, o filho do senhor Juvenal já estava de partida para a oficina mecânica do senhor Honório. Chegando lá lembrou que não viu Bernadette! Será que ela não foi trabalhar? Será que aconteceu alguma coisa com ela?  Será que ela não queria mas lhe ver! Será? Pensava Ronaldo.
-- Senhor Honório, o senhor tem a quinta-louca pra instalar no caminhão?
     Pela primeira vez, Ronaldo foi direto no assunto com alguém sem antes cumprimentar. Com certeza, se seu pai estivesse ali, Ronaldo tomaria uma na tábua-do-pescoço. Não cumprimentar uma pessoa antes e principalmente mais velha primeiro, era a maior falta de respeito com alguém.
     Senhor Honório olhou já sorrindo para o apressado e pensando: o pai desse menino nem imagina o que ele está fazendo aqui e com quais ideias.
-- Tenho sim, filho do senhor Juvenal! Leva de duas a três horas para fazer o serviço. Se começarmos agora, lhe entrego o caminhão ainda hoje. Vai querer?
     Ronaldo lembrou que a barraca de pastel ficava até as duas horas da tarde aberta. Pensou na moça com nariz de fadinha, o coração do moço ficou apertado. Quinze minutos no máximo e estaria no mercado. Nem hesitou:
-- Senhor Honório,  manda ver! Volto as três horas, no máximo as quatro.
     Quando chegou na esquina do mercado, devido a pressa, não prestou atenção na curva da esquina, esbarrou forte em alguém.
     A pessoa não caiu, desequilibrou, galeou de um lado para o outro e antes de perder totalmente o equilíbrio, o desatencioso segurou a pessoa para não cair.
     Ao cruzarem os olhares, assustados, ambos passaram para uma timidez absurda! Afinal, ali, no meio da rua, Ronaldo estava abraçado e entre os braços de Bernadette!
     A moça respirou tão profundamente que empurrou com seu peito, seu admirador inconteste, cravou os olhos nos olhos dele, com os braços em volta da cintura dele.
     Com a boca seca como língua de papagaio, as pernas frouxas e bambas como folha ao vento, braços indecisos, não tirou os braços da cintura de Bernadette. Tentou falar, não conseguiu. Língua presa, dentes ringindo, não tirou os olhos dos olhos dela. Foi a única coisa que no momento conseguia fazer consciente: manter os olhos nos olhos da fadinha amada.
     Um grito chamou os dois a sair do torpor que se encontravam:
-- Bernadette! Sua desavergonhada! Você vai ficar aí namorando o dia todo ou vai trabalhar?  Tem muita panela para lavar! Vou contar tudo para o papai. Você vai ver!
     Esbravejava a irmã mais velha, uma carola mal-amada e solteirona.
     Ao se desvencilhar, os dois estavam suando as bicas! Ele limpou o suor do rosto com as mãos, ela com o avental, enxugou o pescoço, a nuca e abaixo da garganta. Antes de cada um seguir seu caminho, tocaram as mãos. Tocá-las-iam por longos e longos anos num futuro próximo.
     Ronaldo foi direto para a oficina, Bernadette entrou na barraca de cabeça baixa feliz da vida.  Dispensou a irmã dizendo que lavaria e guardaria tudo sozinha, que ela poderia ir mais cedo para contar tudo que viu para o pai.
     Chegando na oficina, Ronaldo tirou todas as dúvidas, conversou bastante com o mecânico, ouviu algumas piadas, contou outras e assim o tempo foi passando. As cinco e meia da tarde, o serviço foi concluído. Ronaldo pagou e agradeceu senhor Honório pelo serviço, em contrapartida, o mecânico deu de presente um adesivo escrito: essa máquina tem QUINTA-LOUCA.
     Quanto mais os dias passavam, mais a quinta-louca surpreendia Ronaldo. Como o caminhão desenvolvia rapidamente! Às vezes, andava mais que carro de passeio. Ronaldo ia ao delírio, aquilo era demais! Ronaldo trabalhava mais e mais, ia à barraca de pastel todos os dias, falava com os amigos, mas seus olhos eram só para ela.
     Na quinta feira, pediu um pastel de guariroba com quiabo e frango para Bernadette. Quando ela entregou o pastel, Ronaldo disse que iria no Barbilhona bar à noite e convidou a moça, disse que ficaria muito feliz se ela fosse e garantiu que a levaria à sua casa.
     A moça surpreendida, não negou nem afirmou, apenas sorriu e disse que iria pedir ao pai. Se fosse, levaria uma ou duas primas de companhia.
     As oito horas, Ronaldo estava sentado próximo da janela, de chapéu panamá, camisa xadrez e seu cintão tampa de marmita com uma cabeça de um touro em relevo. Quando olhou para fora, viu Bernadette com mais duas moças. Ela estava com um vestido até o joelho de chita estampado com flores e borboletinhas. Logo que elas entraram, foram direto à mesa de Ronaldo, ele as cumprimentou e convidou para sentar.      Somente Bernadette sentou, as outras disseram que iram para o Barboletas Bar e encontrariam Bernadette as onze horas aqui. Elas se despediram e se foram.
     Os dois conversaram e conversaram, Ronaldo explicou sobre a quinta-louca, a colheita e distribuição das verduras e legumes e do trabalho dos pais na roça. Ela falou mais sobre voltar a estudar, a família, vontade de viajar, conhecer lugares diferentes. Quando se deram conta, já beirava onze horas. Foi quando Ronaldo roubou um beijo, um selinho da moça bonita.
     Ela não teve tempo de retribuir ou reprovar, as amigas chegaram e pediram para Bernadette se apressar, pois se atrasassem perderiam a confiança do tio.      As três garotas despediram dele, antes de ganhar a rua, Bernadette deu um tchau e mandou um beijinho para ele com um sobro.
     Foi numa quinta-feira que ele foi na casa de Bernadette e começaram a namorar.      Os meses passaram e numa quinta-feira que eles ficaram noivos. Cinco meses depois se casaram na quinta-feira, viajaram no caminhão equipado com a quinta-louca numa quinta-feira.
     A lua de mel durou uma semana, viajaram na quinta e voltaram na outra quinta.
    Bernadette montou sua própria barraca de pastel. Inaugurou a barraca numa quinta-feira.
    Pela manhã seguia o roteiro das feiras ambulantes pela cidade, na parte da tarde, ficava no mercado municipal.
Ronaldo e Bernadette tiveram dois filhos, os dois nasceram numa quinta-feira, o menino foi batizado de Dosquintos Salazar da Silva, a menina Dasquintas Salazar da Silva.
     Os filhos cresceram, foram para escola, faculdade e depois seguiram em suas carreiras.
     Dasquintas e Dosquintos eram muito travessos, davam um trabalho danado para os pais, sempre aprontavam mesmo depois de grandes. E foi num fim de tarde de uma quinta-feira que os dois meninos de Ronaldo, que já eram bem grandinhos, resolveram pegar o caminhão do pai as escondidas. Dariam uma volta pela cidade; foi quando os dois descobriram a quinta-louca.
     Tem uma descida na cidade que tem um quilometro exatamente de extensão, conhecida por ‘descida-fatal’, é longa e o declive é forte.
     Dosquintos resolveu descer a decida-fatal. Quando o caminhão começou a descer, Dosquintos falou pra Dasquintas:
-- Hoje essa quinta-louca vai cantar bonitinha, ah vai!
-- Então pisa sem dó meu irmão! Eu quero ver esse caminhão urrar feito uma mula. Pediu Dasquinta.
     O caminhão pouco antes de percorrer quatrocentos metros já estava de quinta-louca e acelerado tudo que podia. Dosquintos e Dasquintas se deliciavam, se sentiam às portas do céu. Foi quando Dosquintos viu que a velocidade estava acima de cento e vinte por hora.
     Um gosto ruim surgiu na boca do motorista, a outra ao lado percebeu que algo não ia terminar legal. O caminhão estava cada vez mais veloz, a direção mais e mais leve, parecia direção hidráulica. Foi a primeira vez que os dois disseram na vida:
-- Ai! Meu Deus do céu! Me ajude, eu não quero morrer numa quinta-feira! Me livra dessa meu Jesus Cristo!
     No meio da descida, um pepino caiu, logo outros foram caindo devido os solavancos. Depois foi um abacaxi, em seguida vários abacaxis surgiam voando e caindo pela avenida. A menos de trezentos metros do final da descida foram os quiabos e toda a carga tentavam subir para o espaço, mas como a força da gravidade vencia um a um, todos rolaram pelo asfalto quente.
     Caixotes, caixotes quebrados, pepinos, abacaxis, quiabos, tomates e algumas várias caixas de abóboras se misturaram e cobriram o asfalto, um rastro bem definido mostrava a direção do desastre.
     A molecada se divertia, ora com as frutas, ora com a velocidade do caminhão sem direção, mas com uma grande incógnita; o que seria de Dosquintos e Dasquintas naquela aventura?
     O ponteiro do painel de velocidade já havia passado dos 120 km por hora, mais cem metros e o ponteiro quebrou devido à velocidade. O gosto ruim na boca de Dosquintos secou totalmente.      Dasquintas já não falava ou olhava para o irmão. Fechou o vidro da porta, apertou o cinto de segurança no máximo, mantinha as duas mãos no painel com todas as forças que tinha no corpo e na alma.
     Dosquintos então resolveu, num reflexo inconsciente, apenas executou, reduziu a marcha do caminhão, chamou uma quarta marcha e soltou a embreagem. Um estalo seco e forte sacodiu a boleia, a reduzida quebrou as engrenagens do câmbio. Imediatamente, outra reduzida foi tentada, agora a ditosa e tão famosa quinta-louca. De nada adiantou: novo estalo e um sacudidela mais forte foi sentido na boleia e no peito dos dois passageiros da agonia.
     Há duzentos metros de terminar a descida, o caminhão passou com a roda dianteira esquerda em cima de um paralelepípedo, de aproximadamente, 0,50 x 0,50 x 0,50 cm. Dosquintos e Dasquintas pensavam que era uma pedra, mas não, era um paralelepípedo feito sob medida para a calçada do asilo Paz Celestial que ficava do lado direito da avenida para quem desce.
     O caminhão desgovernou totalmente e ao bater no paralelepípedo a barra de direção quebrou imediatamente. As rodas viraram tudo para a direita. Tal era a velocidade que o caminhão não chegou a subir na calçada, tombou, rolou duzentos metros, quebrou toda a carroceria, o chassi ficou todo retorcido, duas rodas traseiras se soltaram e percorreram mais quinhentos metros, até se chocar com uma árvore que partiu ao meio. Os dois pneus dianteiros estouraram. A boleia ficou mais prensada que uma sardinha obesa dentro da latinha.
     O número de curiosos era desproporcional! Gente demais! Como existe gente desocupada nas cidades! Todos se perguntavam:
--- Quem estaria no veículo? Quantos seriam! Seria um motorista casado com filhos pequenos pra criar? Como sua esposa ou seus pais ficariam sabendo duma desgraça daquelas!
     Um grito ecoou dentro da boleia toda arrebentada, logo em seguida um apelo;
-- PeloamordeDeus! Salvem minha irmã! Por favor!
Três rapazes tomaram a iniciativa e subiram em cima da sucata. Como estava toda amassada, um dos rapazes gritou;
-- Preciso de um machado, um pé de cabra e um segueta Starrett, outra marca não funciona!
     Machados, pés de cabras e várias seguetas Starrett apareceram. A moçada não perdeu tempo, a golpes de machadadas, brechas forçadas à pé de cabra e as seguetas Starrett funcionando a todo vapor, logo conseguiram abrir um buraco na bagaçada da sucata. Neste momento a sirene do corpo de bombeiros foi ouvida.      Um pentelho de um curioso gritou:
-- Não toquem nos corpos! Deixa para os bombeiros, sei de casos que pessoas inexperientes ao tentar remover acidentados saldáveis pararam numa cadeira de rodas por lesar e medula espinhal do sujeito.
     Quando o socorro profissional chegou, a divina providência misericordiosa se fez presente também, Dosquintos e Dasquintas saíram andando da bagaceira da boleia. Não havia um único aranhão neles, nem unzinho para contar a história, saíram ilesos.
     As emoções se misturaram nas pessoas que ali estavam, uns choravam, outros cravavam as unhas no coro cabeludo e arrastavam os dedos com tanta força que tufos de cabelos saiam untados de sangue.      Outros aplaudiam, outros achavam uma irresponsabilidade, diziam a si mesmos, esses moleques merecem uma surra com cordão de ferro de passar roupa, pirralhos desgraçados.
     Ronaldo ficou sabendo de tudo poucos minutos depois, estava ansioso, mas sabia que os filhos não tinham se machucado.      Foram levados ao hospital só para exames de praxe após qualquer acidente.
     O caminhão foi retirado da avenida e levado para um ferro velho, toda a carga recuperada foi doada para o asilo Paz Celestial.
Ronaldo e Bernadette decidiram esperar os filhos em casa. Desligaram a tv, fecharam as janelas, tiraram a mesinha de centro, os candelabros, os quadros, sentaram se no sofá e esperaram pacientemente pelos filhos que teriam que voltar para casa, mais hora menos hora. Há! Teriam sim! 
Eder Rizotto
Enviado por Eder Rizotto em 28/03/2017


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