Textos

                          Um Dia Quero Ser...
 
     Quando era pequenino, queria ser motorista de caminhão quando crescesse. Não passou muito tempo e desistiu.
O tio caminhoneiro fugiu de casa, a esposa entrou em paranoia em poucas semanas.

     Num sábado bem cedinho a tia paranoica lhe chamou aos berros:
  -- Moleque! Oh seu moleque! Vem aqui agora, se você demorar lhe busco pelas orelhas, indecente!

     Lá foi o pequenino correndo nas pontinhas dos pés.
     -- Sim senhora, tô aqui!
     -- Debaixo da pia tem uma lata com um papel amarelo com desenho em preto, pega lá pra mim.

     Pequenino deu meia volta e saiu correndo, chegou na pia, achou a lata atrás do botijão de gás que fica debaixo da pia.

     Retornou correndo e depositou na mesa em frente a irmã da mãe que era meia parangolé.
     -- Busca um copo de água pra mim agora seu peste! Esbravejava a tia meia louca
         Ligeiro ligeiro buscou um copo d’água da tália para a desconchavada.
     -- A colher! Cadê a colher ôh cabeça de vento? Volta lá na cozinha e me traz a colher, colher de sopa viu! Urrava a tia insana.

     Foi num pé e voltou no outro, suando as bicas e ressabiado entregou a colher à destrambelhada.

     A mulher não hesitou, abriu a lata, enfiou a colher no copo d’água, tampou a lata e pediu para pequenino com o maior carinho e respeito colocar a lata onde buscara, antes beijou os dedinhos da mão dele. Enquanto o sobrinho regressava à cozinha, a desmiolada bebeu toda a água com o BHC num gole só.

     Poucas horas depois, Morreu. Morreu com os olhos esbugalhados. Com a morte da tia maluca e a fuga do tio inconsequente, morreu também o sonho de ser caminhoneiro.
 
     Algum tempo depois, já adolescente decidiu, quando fosse grande seria dentista.

     Num belo domingo, reunido com amigos em casa assando carne, sentiu uma forte dor de cabeça.

     Tentou disfarçar, mas não teve como, contou a um amigo que seu pai era dentista, decidiram que o melhor seria ir até a casa do amigo, o consultório do pai ficava junto à casa. Às vezes entrou uma lasca de osso num dente né, suspeitou o amigo.

     Senhor Antenor, pai do amigo, pediu para o adolescente abrir a boca. Antenor, o doutor de dentes sentenciou sem pestanejar:
   -- É o dente, vamos extrair e sua dor de cabeça vai permanecer só na lembrança!

     O jovem voltou pra casa sem os dois incisivos laterais e os dois incisivos centrais; Uma semana depois descobriu que tinha sinusite. Tratou-a durante uma semana e a dor de cabeça sumiu, assim como sumiu seus dentes, mas sempre tinha os dentes e a sinusite na lembrança.
 
     Dias vem, dias vão, chegou o vigésimo segundo ano daquele pequenino, no dia do seu aniversário sua namorada, a bela e singela Magnólia lhe pediu sussurrando lhe ao pé do ouvido:
     --Amor! Você é tão forte! Treina MMA bobo! Quero ver você brilhar na televisão, na internet. Já imaginou o tanto que a gente vai viajar, conhecer tantos países e lugares bonitos?

     Treinou bastante, tanto que, no primeiro evento que teve na cidade, o namorado de Magnólia seria a atração principal.

     Cinco dias depois da luta acordou num hospital, levou um pontapé na tábua do pescoço, sofreu uma convulsão dentro do ringue e em seguida teve uma parada respiratória. Gastou todas as economias com o hospital e foi proibido de lutar. Foi abandonada por Magnólia. Casou-se com Jurema Lamas Aquino Rêgo.
     Aos trinta anos de idade, Antônio Morrendo das Dores, não era mais adolescente nem pequenino, decidiu, quero continuar a ser servente de pedreiro, quero ser peão de obra, quero ser ôreia-seca.
     Morrendo das Dores era feliz como auxiliar de pedreiro e sabia, um dia sapecou uma máxima num boteco:
 “Ser feliz e viver em paz consigo mesmo e com seus semelhantes. ”
 
     A caminho da obra pela manhã, tomava uma cangibrina para esquentar o peito, no final da tarde tomava duas doses de cachaça pra chegar calibrado em casa.

     Aos domingos ia à missa, agradecia aos céus e ao todo poderoso pelo alimento em casa, um emprego para pagar as contas, os de dentes que lhe sobrara na arcada dentária, uma cabeça forte pra carregar sacos de cimentos, tijolos etc. ... A paz e o sossego do lar. Sempre depositava algumas moedinhas na igreja.

     Num domingo, já aos sessenta anos de idade, à tarde, a casa cheia de parentes, amigos, os filhos assando a carne, a esposa fazendo o vinagrete, lembrou quando se meteu a ser lutador, quando perdeu os dentes, quando a esquizofrênica da tia bebeu BHC.
     Das Dores foi até a cozinha, com dificuldades agachou perto da pia, tateou com a mão direita, pegou uma lata que estava atrás do botijão de gás.

     Levantou com a sensação que alguns ossos estalaram, aprumou de frente para o armário, abriu uma gaveta já enferrujada e gasta pelo uso e falta de manutenção, pegou uma colher e caminhou até a mesa que estava no centro do quintal.
     Pediu ao filho mais novo pegar um copo d’água, bem geladinha, orientou ao filho não ter pressa e lhe beijou as mãozinhas.
      Abriu a lata, meteu a colher dentro da lata, mexeu devagarinho o pô na água, olhou envolta, sorriu despretensiosamente, entrementes um sorriso ironicamente contagiante, absorveu como uma bucha o seu suco tranquilamente que quartava deste quando era pequenino e suspirou pelo vão dos dentes da frente.
 
Eder Rizotto
Enviado por Eder Rizotto em 14/02/2017
Alterado em 14/02/2017


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Imagem de cabeçalho: raneko/flickr