Muito Cansada Demais.
Parte III
Valentina Flores recuperou-se rapidamente do susto e dos sentimentos que haviam aflorado. Olhou para as janelas calmamente e apoiou-se no portãozinho. Fitou os vasos de flores, as janelas e o interior da casa.
Com seus passos miudinhos penetrou na casa sem temor ou tremor. Ao passar pela porta trancou-a a chave, foi até a cozinha e seguiu em rota direta para o quarto sem alumiar um espaço sequer.
Transpôs a porta do quarto, declinou a cabeça para baixo e manteve-a abaixada num sinal de inocência, não alumiou o quarto ao mover em direção da cama.
Um perfume lhe envolveu lentamente. Sentiu uma mistura de torpor e desejo, uma vontade de não olhar a cama, mas se fazia necessário.
Sentou no lado oposto da cabeceira da cama. O lençol estava esticado como havia deixado, sentiu a maciez do linho, deitou-se lentamente, esticou o braço vagamente na certeza de encontrar algo. Suspirou em segredo. Reconheceu imediatamente outro botão de rosa.
Valentina alumiou o quarto. Vermelha, muito vermelha, pétalas aveludadas, haste verde e comprida, com folhas e sem espinhos, quase idêntica à outra, mas algo lhe chamou a atenção: a haste era um pouco menor em relação à primeira. Exceto esse detalhe, ambas tinham a mesma aparência e intensidade.
Sem sustos ou arrombos, percorreu toda a casa, tudo estava exatamente onde deixara, nada faltava, a fechadura não foi forçada, não havia sinal de uso de força desproporcional na lingueta. A porta foi aberta com uma cópia da chave! Alguém entrou, depositou o botão de rosa e evadiu. Mas por que deixar a porta aberta?
Os dias seguiram exatamente como dantes, saia de casa com seus passinhos tímidos, trabalhava envolvida em pensamentos que a cada dia que passava dava mais cor e intensidade ao seu invasor desconhecido.
Ao voltar para casa encontrava-a de porta aberta, não faltando nada e com um botão de rosa vermelho, porém, a cada dia a haste do botão ficava menor.
Valentina guardou todas, e percebendo que as últimas hastes eram bem curtas, mediu uma a uma. As hastes diminuíam proporcionalmente de um em um centímetro. A última havia apenas cinco centímetros. Vinte e cinco dias haviam se passado. Valentina pensativa por alguns instantes, não conteve uma forte dor no peito, não teve tempo para chorar ou gritar aos céus. Desmaiou!
Acordou embriagada em um torpor, não conseguiu abrir os olhos. Sentia os afagos de uma mão a alisar seus cabelos, às vezes sentia ser abraçada, mesmo estando acomodada num colo. Continuava inebriada pelas essências das 25 flores bem cuidadas dentro do quarto.
-- Valentina? Valentina? Olha pra mim! Sou eu! Marcela!
Marcela enxugou o rosto de Valentina, acomodou-a melhor na cama, desligou a luz do quarto, sentou ao pé da cama e manteve-se quieta, imóvel. Apenas observava sua amiga, sentia-se torturada pela situação da amiga, buscou forças para ajudá-la. Encontrou no transcendente, no inteligível; deixou um pranto escoar sem pressa para arrefecer-lhe o coração sem que Valentina percebesse.
Uma luz intensa e constante acordou Marcela e Valentina. Deitadas na mesma cama, não levantaram de imediato, apenas apertaram as mãos. Valentina permanecia de olhos fechados quando perguntou à amiga - Por que dormiu aqui, na minha cama?
Entrementes, antes de responder, Marcela não lembrava se a janela do quarto estava aberta na noite anterior. Encafifada com a janela aberta, não a respondeu de imediato, pensou e repensou até que fez uma pergunta: você dorme com a janela do quarto aberta, Valentina?
Maritacas, pombo-do-bando, pardais, rolinhas rasgavam os céus numa algazarra estridente com seus cantos, mas dentro do quarto, as duas distinguiam os sons de cada pássaro e ouviam atentamente e pacientes o canto de cada pássaro que lhes acalmavam mais e mais os corações.
Valentina havia trancado todas as janelas, bem fechadas pelo lado de dentro, lembrou-se mantendo a calma. A janela fora aberta por alguém, entrou na casa, entrou no quarto enquanto as duas dormiam, destrancou a janela e sumiu. Seria o mesmo dos botões de rosa?
Valentina não quis assustar Marcela, respondendo
-- Sim, eu deixei a janela destrancada, com certeza o vento abriu-a durante a madrugada.
-- E você! Por que dormiu aqui? O que aconteceu?
-- Ontem à noite, a sua vizinha, Dª. Silvana, me ligou assustada. Contou-me que a porta da sala estava aberta, resolveu entrar e lhe chamar, pois já passava das nove da noite e como você não a respondeu, ela entrou e encontrou você caída ao pé da cama.
-- Quando lhe encontrei, você estava muito agitada, trêmula e falava coisas sem sentidos. Então tentei lhe acalmar e dormir aqui para cuidar melhor você.
-- Estou bem agora Marcela, obrigado pela sua atenção. Acho melhor chegarmos atrasadas um pouco no trabalho do que faltarmos.
Valentina não revelou a causa de seu desmaio, pois aquilo era algo para não dividir com ninguém. Entrementes, ao perceber que só faltavam apenas cinco centímetros para terminar a haste do último botão de rosa, deduziu que para seu aniversário de 30 anos, faltavam apenas cinco dias.
Os quatro dias seguintes seguiram como os outros vinte e cinco dias: porta aberta e um botão com a haste sempre com um centímetro menor em relação ao último.
No quinto dia, no aniversário de trinta anos, Valentina não acordou. Dra. Silvana a examinou e pediu para a enfermeira entrar em contato com os familiares.
Alguns minutos mais tarde apareceu Marcela, sua irmã, os pais e os outros dois irmãos homens que moravam em outra cidade. No dia seguinte todos já estavam juntos velando o corpo de Valentina, numa igrejinha dentro do Hospital.
Valentina faleceu em virtude de uma parada cardíaca. Ela estava internada há trinta dias. Ela tentou suicidar se jogando do quarto andar de um edifício.
Exatamente há um ano atrás, ela havia recebido vinte e nove rosas vermelhas, uma por dia, do noivo que pediria aos seus pais a sua mão em casamento. Mas ele morreu no trigésimo dia, antes de lhe entregar a última rosa. Foi atropelado a caminho da casa dos pais de Valentina.
Fim.