Textos


Um Olhar a Deriva
Capítulo III
 
O Som do Silêncio

 
     Jacinto Melgaço, filho de escoceses, não conheceu bem a suas paragens de origem, de lá mudou-se ainda em tenra idade, mas o pouco que lá vivera assimilou algumas coisas da terra natal.

Melgaço não dominava a língua portuguesa, de temperamento bonachão, muito branco, olhos azuis, sujeito alto e muito forte, não tinha o olhar desconfiado ou de olhar as espreitas. Não!

Homem discreto e respeitoso. Quando aqui chegou em 1941 foi morar no Bairro Dos Aloprados, divisa com Bairro dos Aflitos, na Rua Dos Perdões nº 24. Morou neste bairro por um bom tempo. Aos 25 anos mudou-se para o bairro da Salvação na Rua da Degola, divisa com o bairro das Batatinhas nº17, quase no fim da rua, rua de terra batida e sem calçada.

A vizinha de Jacinto Melgaço, morava com um filho de 8 anos de idade. Dª Lúcia. Lúcia é dessas mulatas de chamar a atenção, pernas longas, pele de chocolate, cabelo crespo, olhos pretos e grandes, combina muito bem com o rosto, lábios carnudos, um sorriso lindo.

Seu filho era muito calado, de braços fortes e curtos. Mãos grandes, olhos claros, lábios finos e pele cor de manteiga feita na roça. Suas roupas muito simples, todavia sempre limpas, bem passadas, era um simplório, mas vestia-se bem.
     Estudava numa escola muito boa, particular. Sua mãe sempre o levava todos os dias, mas deixava o menino a uma quadra da escola. Foi um acordo de senhoras para que o moleque pudesse estudar naquele colégio.

Um dia um fato trágico e curioso aconteceu. Passional, filho de Dª Lúcia brigou na escola, moleque calado mas bom na troca de sopapos, “baixim”, mas menino despachado, braços roliços com muito muque, esbordoou o filho de Dª Vulvelina, esposa do delegado Salpicão das Ventas Fortes.

Dª Lúcia procurou Jacinto Melgaço, pediu-lhe ajuda para ajudar num imbróglio na escola. Jacinto Melgaço vendo o desespero de Dª Lúcia não titubeou, saiu em disparada até a escola para conversar com o delegado, pois este já esperava na escola o responsável pelo garoto que esbordoara seu filhinho Sustevaldo.
Jacinto desceu bairro abaixo em direção a escola, quanto mais rápido Jacinto descia, mais ideias a respeito de Passional vinha-lhe a cabeça. Descera por uma viela chamada Cai-Cai, virou na rua do Comendador das Flores, percorreu uns duzentos metros.

Chegou na praça dos Bandeirantes, já era possível avistar a escola que ficava na Rua Cavalo Queimado. A escola tinha dois andares, janelas de cor azul persa, portais azul petróleo, com as portas azul ardósia.

Haviam 30 salas: vinte de aulas, biblioteca, auditório, sala de reuniões. Cada sala de aula tinha um nome, as salas do 1º ao 4º ano eram de coronéis do cacau. As salas do 5° ao 8° eram de políticos. As salas do Científico era de militares.

A diretora era a senhora Lourdes, mas todos chamavam-na de Dª Lurdinha. Baixa, de pernas curtas e finas, a mãe de Lurdinha era filha de um coronel do cacau, já o pai era um militar. Dª Lurdinha andava sempre com uma régua em punho. Media as traquinagens dos alunos na base da palmatória. A criança decidia quantas reguadas levaria em caso de travessuras, deste que não fosse menos que 7.

Jacinto entrou na escola um tanto esbaforido, mas resoluto a defender o filho de Dª Lúcia. Ao adentrar a sala da diretora o moleque encontrava-se erguido pelos colarinhos pelo delegado Salpicão das Ventas Fortes.

O delegado era um homem forte, peito largo, pernas e braços cheios de muque, olhos muito claros, lábios finos, um pescoço que lembrava gargalo de garrafa, cabeça pontiaguda devido a um acidente.

Quando neném caíra do colo da mãe e o pai pisou lhe na cabeça, comprimindo as orelhas, estufando a abóbada do crânio. Seu pai pesava muito e era surdo do lado esquerdo, a mãe, senhora Socorro do Perpétuo gritou.

Gritou mais que o suficiente, mas o senhor Mamarracho do Socorro não retrocedeu. Socorro do Perpétuo continuou com seu berreiro. Inútil a gritaria. O esposo transpôs o empecilho que encontrava debaixo de seus pés, apoiou bem o pé, equilibrou-se e saiu da frente dela.

Salpicão das Ventas Fortes tinha os braços que não passavam da cintura, mas tinha força suficiente para segurar um touro. Jacinto Melgaço olhou para o delegado, olhou para o Passional e retornou o olhar para o delegado. Após os olhares se cruzarem, Melgaço olhou para baixo, manteve o olhar no assolhado de madeira, levou a mão ao queixo, desviou um pouco a trajetória da mão para o lado direito, seguiu até a testa.
Com o olhar no piso de madeira jatobá, manteve a mão na testa, deslizou o polegar até a sobrancelha da esquerda e pressionou com o dedo médio a sobrancelha da direita. Deslizou estes num indo e vindo. Manteve-os ali, massageando a glabela1.

Olhou para senhora Lurdinha como se estivesse convidando-a para seguir na direção do seu olhar. Olhou para Passional, depois para os olhos e braços do delegado, ancorou o olhar no piso já desbotado e surrado pelos alunos.
Jacinto Melgaço deslizou a mão da testa ate a nuca, pressionando a nuca, lançou um olhar para o teto pouco alumiado.

Salpicão não pressionava o colarinho do filho de Dª Lúcia, sentia um certo escárnio, um sarcasmo doentio e cheirando a arrependimento. Faltava-lhe saliva, mas não era água que buscava.

O olhar vibrante tornara agora um olhar a deriva. Resistiu para que seu olhar de soslaio não cruzasse com os olhares da senhora Lurdinha. Suas forças esvaiam-se. Como manter Sustevaldo preso as suas mãos? Não encontrava meios para tirar as mãos daquele menino, já esquecido na sala!

Os olhares dos adultos, naquela sala, perseguiam uns aos outros no piso surrado, o silêncio era a linguagem que explicava todos os fatos.

As janelas estavam abertas, uma poltrona verde-esmeralda no canto esquecida, uma Remington Rand já abandonada, faltavam algumas teclas, outras desbotadas. Mas as teclas que não são do nosso alfabeto, naqueles tempos, se encontravam perfeitas.

Toda a mobília era em bálsamo, as canetas eram modelos anos 30. Há momentos que não há cadeiras perfeitas nem canetas que escrevem perfeitamente, mas o silêncio, este som que nos acompanha em qualquer momento, às vezes, não é perfeito, revela sonhos e pesadelos.

- Posso ir pra sala? perguntou Passional.
- Faltavam apenas quinze minutos para terminar a aula Passional, você pode voltar com o senhor Jacinto, se ele concordar meu filho, disse Dª Lurdinha.
- Acredito que é melhor para o menino, senhora Lurdinha, disse Melgaço. A mãe dele está preocupada com os acontecimentos. Agradeço pela atitude da senhora.

Despedidas não houveram entre aqueles que se encontravam na diretoria. Passional saiu primeiro com sua mochila improvisada, feita de um pano de cambraia com seu nome bordado.

A diretora informou ao delegado que seu filho já estava a caminho da diretoria. Quando chegou na diretoria encontrou o pai sozinho. Sustevalvo estava com um lado do rosto avermelhado, a camisa rasgada nas costas.      Passional esfregou-o no cimentado grosso.

Susu, como era chamado pela mãe, não parava de passar a língua em um dente que se mostrava diferente em relação aos demais.

Salpicão das Ventas Fortes num ímpeto abraçou o filho, passou lhe as mãos na testa, no cabelo, abraçou o filho e sorriu discretamente, sem reprimi-lo. O filho apoiou as duas mãos nos ombros do pai que havia agachado, olhou nos olhos do pai e sorriu.

Incrivelmente rápido, o delegado arrancou o dente abalado com a mão. O susto foi tão grande que não houve dor. O filho do delegado apenas manteve os olhos no pai, enquanto este jogava o dente do filho pela janela. Falou:

- Mantenha a boquinha longe dos ouvidos de sua mamãe, ou seu pai lhe arranca um rin.

Sustevaldo de nada entendeu o que ocorrera entre ele e o pai. O sangue escorreu da boca, mas não chegou ao chão, gotejava no sapato. Não foram mais que três gotas, pois o pai levou o lenço à boca do guri. O delegado segurou firme o braço do filho e saiu à francesa.

Jacinto Melgaço tinha 8 anos quando foi morar no Bairro dos Aloprados na Rua dos Perdões. Em 1975 mudou-se para a rua Brejo Raso no Bairro dos Aflitos, para nunca mais de lá sair.

A mudança foi algo fantástico, houve até um princípio de comoção, depois a comoção perdeu espaço para a indignação e em seguida sobrou apenas o passado.


1 -  Espaço que separa as sobrancelhas.
Eder Rizotto
Enviado por Eder Rizotto em 24/01/2016
Alterado em 24/02/2016
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